Capítulo 4: Mihael e a Linha Vermelha
Mello se levantou da cadeira e pegou o caderno e a caneta, sentindo o peso da mudança iminente. Ele voltou para sua mesa, ligando o computador e abrindo o arquivo de tarefas. A lista de César estava ali, mostrando dezenove tarefas restantes. Ele tinha que continuar trabalhando, mesmo com o estômago apertado pela ansiedade. Ele se concentrou no item vinte e um: ligar para o fornecedor de papel. Ele pegou o telefone, mas a mão dele tremeu levemente. Ele respirou fundo, tentando afastar a frustração que o invadia. Ele não desistiria. Ele faria as vinte e cinco tarefas, mesmo que tivesse que fazer a mudança sozinho. Ele discou o número, determinado a provar que a localização física não afetaria a utilidade dele.
O resto da tarde passou em um borrão de trabalho intenso. Mello completou as tarefas restantes, ligando para fornecedores, organizando documentos digitalizados e preparando um rascunho da agenda de César para a próxima semana. Ele se forçou a ignorar a presença de César, que trabalhava silenciosamente na mesa ao lado, e a porta que agora representava uma barreira entre eles. Ele sabia que César o observava, avaliando sua reação à notícia da mudança. Mello se concentrou em cada detalhe, garantindo que não houvesse erros.
Às sete e meia da noite, Mello riscou o último item da lista. Ele olhou para a folha, sentindo uma satisfação silenciosa por ter completado tudo.
César levantou a cabeça da pilha de documentos. Ele olhou para Mello.
“Terminou?” César perguntou.
“Sim, César. A lista de tarefas de hoje está completa, e as notas da reunião de marketing foram enviadas por e-mail.”
César assentiu. “Bom trabalho. Você está saindo?”
“Sim.” Mello começou a guardar o notebook e o caderno na pasta.
César ficou em silêncio por um momento. Mello percebeu que César estava avaliando-o.
“Sua nova mesa deve estar pronta amanhã,” César informou. “O pessoal de TI vai configurar o desvio de chamadas e o acesso remoto. Chegue um pouco mais cedo para se ambientar.”
“Claro, farei isso,” Mello respondeu, mantendo o tom profissional.
Mello pegou sua pasta e se dirigiu à porta. Ele hesitou por um segundo, olhando para o espaço que ocupara nos últimos dias, o canto que lhe dera a chance de provar seu valor. A partir de amanhã, ele estaria na selva de cubículos, visível para todos.
“Tenha uma boa noite, César,” Mello disse.
“Igualmente, Mello,” César respondeu, já voltando a ler o documento.
Mello saiu do escritório. O corredor estava quase vazio agora. Ele pegou o elevador até o térreo.
A viagem de ônibus de volta para casa pareceu interminável. O cansaço o atingiu com força. Ele pensava na discussão com Mihael na noite anterior e temia a reação dele à notícia da revista de fofocas. Ele tentou formular mentalmente como explicaria a situação e a mudança de mesa. Ele se sentia exausto, não apenas fisicamente pelo dia de trabalho, mas emocionalmente pela pressão de manter a fachada de eficiência enquanto lidava com a insegurança e o ciúme de Mihael.
Mello chegou ao apartamento. Ele usou a chave e abriu a porta, encontrando o apartamento silencioso. Ele tirou os sapatos e deixou a pasta no chão, sentindo o alívio de estar em casa.
Mihael estava na sala, sentado no sofá. Ele estava vestindo apenas uma camiseta e calças de moletom, e o apartamento cheirava a comida que Mello reconheceu como macarrão instantâneo. Mihael olhou para Mello quando Mello entrou na sala.
Mihael não sorriu. A expressão dele era tensa. Ele estava segurando o telefone na mão, e a tela estava acesa.
“Você demorou,” Mihael disse, a voz dele estava plana.
“O dia foi longo,” Mello respondeu, caminhando até ele. “Tive que terminar a lista de tarefas, e as coisas foram complicadas hoje.”
Mello sentou-se na poltrona perto do sofá, tirando o blazer e jogando-o sobre o braço da poltrona.
“Complicadas como?” Mihael perguntou. Ele apertou o telefone na mão.
Mello respirou fundo. Ele sabia que não podia esconder a situação.
“Sabe aquela revista de fofocas que Teresa estava segurando?” Mello perguntou.
Mihael estreitou os olhos. “Não sei do que você está falando.”
Mello franziu a testa. “Eu te contei sobre Teresa me mostrando uma revista de fofocas no corredor, antes da reunião de marketing?”
Mihael fez uma pausa. “Você me mandou uma mensagem rápida dizendo que o César estava estressado e que você tinha um resumo para fazer, mas não me deu detalhes. Eu passei o dia todo preocupado.”
Mello percebeu que havia resumido demais a situação. Ele havia focado tanto no trabalho que havia negligenciado dar contexto a Mihael.
“Desculpe, eu estava correndo contra o tempo. A revista publicou uma nota sobre César e eu,” Mello explicou.
Mihael levantou-se do sofá, caminhando até a janela, olhando para a rua escura.
“Eu sei,” Mihael disse, a voz dele estava baixa. “Eu vi.”
Mello se levantou da poltrona. “Como você viu?”
Mihael virou-se, o rosto dele estava pálido. Ele segurava o telefone na mão.
“Eu estava no Twitter,” Mihael disse, gesticulando com o telefone. “O perfil oficial da revista de fofocas postou a foto, Mello. Aquela foto granulada. Eles chamaram você de ‘jovem protegido’.”
Mello sentiu o rosto esquentar. Ele não tinha pensado que o boato se espalharia para a internet. Ele esperava que ficasse confinado à revista impressa.
“É ridículo. É fofoca de tabloide,” Mello argumentou.
“Ridículo, talvez, mas está lá,” Mihael respondeu, voltando para o sofá. Ele jogou o telefone na almofada. “As pessoas estão comentando. Estão falando sobre o magnata da mídia e o secretário bonito.”
Mihael olhou para Mello, e Mello viu a frustração e a mágoa nos olhos dele.
“Eu não gosto disso, Mello,” Mihael disse. “Eu não gosto de ver o seu nome ligado ao dele, especialmente não dessa forma.”
Mello caminhou até o sofá e sentou-se. Ele tentou pegar a mão de Mihael, mas Mihael a puxou, cruzando os braços.
“É só trabalho, Mihael. César jogou a revista no lixo. Ele não deu importância,” Mello tentou acalmá-lo.
“Ele não deu importância, ou ele se preocupou com a reputação da Solitare?” Mihael questionou. Ele se inclinou para a frente. “Você me disse que o Conselho ligou para ele. O que o Conselho disse?”
Mello hesitou. Ele não queria dar mais munição à Mihael.
“Eles estavam preocupados com a imagem da empresa,” Mello admitiu.
“Exatamente,” Mihael disse, a voz dele subiu um tom. “E o que isso significa para você? Você está lá, o tempo todo, trabalhando dez horas por dia. Você não tem tempo para mim. Você não tem tempo para você. E a única coisa que sai disso são rumores de que você está dormindo com o seu chefe.”
“Eu não estou dormindo com ele!” Mello exclamou, defendendo-se. “Eu estou trabalhando duro. Ele me deu a chance de provar meu valor, e eu estou fazendo isso. Eu estou sendo o secretário que ele precisa.”
“E por que ele precisa de você, Mello?” Mihael perguntou, e a pergunta atingiu Mello como um soco. “Por que ele é tão paciente com você? Por que ele te dá trinta tarefas por dia, mas te elogia pela precisão, quando ele demitiu os outros secretários em uma semana?”
Mello sentiu a pressão. Ele tinha se perguntado a mesma coisa, mas nunca ousara verbalizar.
“Eu sou eficiente,” Mello disse, tentando manter a calma. “Eu aprendo rápido. Eu me dedico.”
“Ou ele está te dando tratamento especial,” Mihael rebateu. “Eu li a matéria, Mello. Diz que você é ‘misterioso’ e ‘jovem’. Você está alimentando isso com a sua dedicação. Você está deixando ele consumir todo o seu tempo.”
“Ele não está me consumindo. Eu estou construindo minha carreira!” Mello disse. Ele se levantou do sofá, andando pela sala. “Eu preciso desse emprego. Você sabe que eu preciso. Eu consegui o cargo de secretário do maior diretor da Solitare. Eu não posso estragar isso por causa de fofocas.”
“Você está estragando a nossa relação por causa desse emprego!” Mihael gritou, levantando-se também. Ele apontou para Mello. “Eu não vejo você. Você só fala sobre ele, sobre as tarefas dele, sobre o quanto você está cansado por causa dele.”
“Eu estou trabalhando para pagar a hipoteca, Mihael! Eu estou trabalhando para o nosso futuro!” Mello argumentou.
“Nosso futuro não vale nada se não tivermos um presente, Mello!” Mihael disse. Ele olhou para Mello com desapontamento. “Eu não me importo se é só trabalho. Eu me importo com o que as pessoas estão dizendo, e eu me importo com a forma como você o coloca em primeiro lugar.”
Mello parou de andar. Ele olhou para Mihael. Ele viu a dor de Mihael e o ciúme que ele estava tentando disfarçar.
“Eu sou seu namorado, Mello. Eu deveria ser a sua prioridade. Mas o César Marchetti está sempre no meio,” Mihael disse, a voz dele estava mais suave agora, cheia de mágoa.
Mello voltou para o sofá. Ele sentou-se, passando a mão pelo cabelo. Ele precisava que Mihael entendesse a seriedade da situação profissional.
“Eu sei, e eu sinto muito por ter te deixado de lado. Mas a situação na Solitare é delicada. E eu tomei uma atitude para resolver o problema da imprensa,” Mello disse.
Mihael inclinou a cabeça. “Que atitude?”
“César está me mudando de mesa,” Mello explicou. “A partir de amanhã, eu não vou mais trabalhar na sala dele. Eu vou para o espaço aberto, com os outros assistentes.”
Mihael piscou. Ele sentou-se na beirada do sofá, olhando para Mello com surpresa.
“Ele está te tirando da sala dele? Por quê?” Mihael perguntou.
“Ele disse que é para ‘gerenciar a percepção’,” Mello respondeu, fazendo aspas no ar. “O Conselho se estressou com a matéria, e ele precisa mostrar publicamente que há uma distância profissional entre nós. Se eu estiver no espaço aberto, as pessoas não vão mais tirar fotos de nós ‘entrando juntos’ no escritório.”
Mihael ficou em silêncio por um momento, processando a informação.
“Então, ele está te punindo por causa da imprensa?” Mihael perguntou.
“Não é uma punição. É uma medida de precaução,” Mello corrigiu. “Ele disse que eu sou eficiente e que ele não quer desfazer o que funciona. Eu continuo sendo o secretário dele, só que em uma localização diferente. É para proteger a imagem da Solitare.”
“Proteger a imagem dele, você quer dizer,” Mihael murmurou.
“A imagem da empresa e a dele são a mesma coisa, Mihael,” Mello disse. “É a única forma de ele cortar esses rumores sem fazer uma declaração oficial, que só daria mais atenção ao assunto.”
Mihael suspirou, esfregando o rosto. Ele pegou o telefone do sofá e desligou a tela.
“Eu sei que isso é importante para você, Mello. Eu realmente sei. Mas eu estou cansado de me sentir em segundo plano para o seu trabalho, para o seu chefe, e agora para fofocas idiotas,” Mihael confessou. “Eu estou no limite, Mello. Você precisa traçar uma linha. Você precisa me garantir que ele é só seu chefe. Nada mais.”
Mello olhou para Mihael. Ele estendeu a mão novamente, e desta vez Mihael aceitou, segurando a mão de Mello.
“Ele é só meu chefe,” Mello disse, olhando nos olhos de Mihael. “Eu não tenho nenhum interesse romântico ou pessoal em César. Eu tenho medo dele e o respeito profissionalmente. Eu estou focado em provar que eu mereço estar lá, e que eu sou útil. Eu não vou deixar o trabalho interferir em nós. Eu prometo.”
Mihael apertou a mão de Mello, mas a tensão dele não desapareceu.
“Se essa mudança de mesa não funcionar,” Mihael disse, a voz dele estava firme. “Se os rumores continuarem, ou se você continuar voltando para casa exausto e sem vida, nós vamos ter que conversar sobre o quanto esse trabalho vale a pena.”
Mello engoliu em seco. Ele sabia que Mihael estava falando sério. A hipoteca era uma preocupação real, e o trabalho na Solitare era a única coisa que lhes dava estabilidade financeira. Ele não podia perder o emprego.
“Eu vou fazer funcionar,” Mello garantiu. “Eu vou ser o secretário mais eficiente do espaço aberto.”
Mihael assentiu, soltando a mão de Mello e recostando-se no sofá. O silêncio voltou, mas agora estava cheio de uma trégua cautelosa.
“Você comeu?” Mello perguntou, tentando aliviar o clima.
“Só macarrão instantâneo. Eu não estava com cabeça para cozinhar,” Mihael respondeu.
“Eu preparo algo. Eu estou exausto, mas preciso de comida de verdade,” Mello disse.
Mello se levantou e foi para a cozinha. Ele preparou um sanduíche rápido para ele e para Mihael. Enquanto Mello preparava a comida, Mihael entrou na cozinha e encostou-se no balcão.
“Eu te amo,” Mihael disse.
Mello olhou para Mihael. “Eu também te amo. E eu não vou deixar que César ou a Solitare nos separem.”
Mello entregou o sanduíche para Mihael, e eles comeram em silêncio, a tensão ainda pairava, mas a promessa de Mello tinha conseguido restaurar uma pequena parte da conexão deles.
Mello deitou-se na cama naquela noite, sentindo-se esmagado pelo peso da responsabilidade. A nova dinâmica de trabalho com César, os rumores na imprensa, e a ultimato silencioso de Mihael criaram um nó de ansiedade em seu estômago. Ele sabia que o dia seguinte seria um teste. Ele teria que se adaptar ao caos do espaço aberto, e provar a César que a mudança de local não afetaria sua eficiência. Ele precisava ser ainda mais perfeito.
O despertador tocou às seis da manhã. Mello se levantou imediatamente. Mihael estava dormindo ao lado dele. Mello se vestiu, tomando cuidado para não fazer barulho. Ele preparou o café e comeu a fruta. Ele revisou mentalmente a lista de tarefas incompletas da semana anterior, preparando-se para o novo ambiente de trabalho.
Ele saiu do apartamento às sete. A viagem de ônibus foi longa, e Mello usou o tempo para se concentrar no trabalho, ignorando a apreensão.
Ele chegou ao prédio da Solitare às sete e vinte. Subiu pelo elevador até o vigésimo quinto andar.
Mello entrou no escritório principal, preparando-se para caminhar para o espaço aberto. Ele esperava ver um cubículo novo e talvez algumas caixas com seus pertences.
No entanto, ele parou na porta do escritório de César. César já estava sentado à mesa, lendo o tablet, com a xícara de café na mão. E a mesa de Mello ainda estava no mesmo lugar, ao lado da mesa de César. A pasta de Mello ainda estava na cadeira.
Mello franziu a testa. Ele caminhou até a mesa, confuso. Ele olhou para César.
“Bom dia, César,” Mello disse.
“Bom dia, Mello. Você está no horário,” César respondeu, sem levantar a cabeça do tablet.
“Minha mesa… ela não foi movida?” Mello perguntou.
César levantou o olhar. Ele olhou para Mello com uma expressão de aborrecimento.
“A equipe de TI cometeu um erro de logística,” César explicou, voltando a olhar para o tablet. “Eles disseram que não conseguiram configurar a rede e o telefone a tempo. A mudança será adiada para a próxima semana. Parece que você terá que suportar o luxo da minha sala por mais alguns dias.”
Mello sentiu uma onda de emoções mistas. Alívio pela paz e o silêncio da sala, e frustração pela instabilidade do plano. Ele sabia que cada dia que passava ali era um risco de mais fofocas.
“Entendido,” Mello disse. Ele colocou a pasta na mesa.
“Você já preparou o meu café?” César perguntou.
“Ainda não. Vou fazer agora.”
Mello foi para a cafeteira e começou a preparar o café. Ele tentou ignorar a ironia da situação. Ele tinha preparado Mihael para a mudança, e agora estava de volta à sala particular de César.
Enquanto a água esquentava, Mello ligou o computador. Ele começou a ler os e-mails, organizando a caixa de entrada de César.
A cafeteira apitou. Mello encheu as duas xícaras. Ele levou a xícara de César para a mesa, sem açúcar. César pegou a xícara, finalmente fechando o tablet.
“Lista na impressora,” César disse.
Mello pegou a folha. Tinha trinta e uma tarefas hoje. Um pouco menos do que o dia anterior, mas ainda intensa.
“Reunião com a equipe de produção às nove,” César informou. “Você fará as anotações.”
“Certo.” Mello riscou o primeiro item: “Revisar agenda de César para o dia.” Ele já havia feito isso antes de sair de casa.
Mello começou a trabalhar intensamente. Ele tinha que compensar o tempo perdido com a confusão da mudança. Ele se concentrou nas tarefas de prioridade máxima, respondendo e-mails urgentes e organizando os layouts para a reunião de produção.
Às oito e meia, César se levantou. Ele vestia um terno cinza escuro.
“Mello, vamos sair,” César disse.
Mello olhou para César. “A reunião com a produção foi cancelada?”
“Não. É o nosso primeiro compromisso fora do prédio hoje. Prova de roupas para a nova temporada,” César explicou. “O estilista principal, Jean-Pierre, quer a minha aprovação final nos designs de inverno. Você vai comigo.”
Mello pegou o caderno de anotações e a caneta. “Devo levar o notebook?”
“Não. Apenas as anotações. Estaremos fora por cerca de duas horas,” César disse.
Mello seguiu César para fora do escritório. Desta vez, ele sentiu o peso dos olhos das pessoas no corredor, lembrando-se da matéria de fofocas. Ele manteve a cabeça erguida, focado em acompanhar César.
Eles desceram de elevador até o estacionamento subterrâneo. O motorista de César, um homem mais velho chamado Jorge, estava esperando ao lado do carro preto e brilhante.
Jorge abriu a porta de trás. César entrou, e Mello entrou em seguida.
O carro saiu do estacionamento e entrou no trânsito matinal de Nova York. Mello abriu o caderno, preparando-se para anotar o endereço e o horário de retorno.
César olhou pela janela, a expressão dele estava distante.
“Jean-Pierre é um gênio, mas ele gosta de drama,” César disse, sem olhar para Mello. “Espere por uma hora de desfile e argumentos sobre a cor de um botão.”
Mello sorriu levemente. “Vou garantir que as anotações sejam detalhadas.”
Houve um silêncio. César virou a cabeça e olhou para Mello.
“A propósito, sobre o que conversamos ontem,” César começou. “O Conselho me ligou novamente esta manhã. Eles viram que a mesa ainda estava aqui. Tive que explicar o erro logístico de TI. Eles não ficaram felizes.”
“Eu sinto muito, César. Eu vou me certificar de que a mudança aconteça o mais rápido possível,” Mello disse.
César suspirou. “Não é sua culpa, Mello. É a estupidez inerente à imprensa de fofocas e à reação exagerada do Conselho.”
César encostou-se no assento. Ele olhou para Mello com uma intensidade incomum.
“Eu acho tudo isso ridículo, Mello,” César declarou. “Quando Emily era minha secretária, ela trabalhou comigo por um ano e meio. Nós viajamos, passamos longas horas no escritório, e ninguém nunca sequer suspeitou de um caso.”
Mello absorveu a informação sobre Emily. Ele sabia que Emily era a secretária que o antecedera, mas César raramente falava sobre ela.
“Mas na sua primeira semana, já surgiram rumores sobre você e eu,” César continuou. Ele balançou a cabeça, expressando descontentamento. “É o tipo de sensacionalismo que a Solitare tenta evitar, e que o Conselho odeia.”
Mello sentiu uma pontada de ofensa, mas manteve a expressão neutra. Ele não podia argumentar com o diretor.
“Eu vou manter a distância no escritório, César. Eu garanto que não haverá mais fotos,” Mello disse.
César olhou para Mello. Ele analisou Mello por um momento, do corte de cabelo loiro bagunçado à camisa social impecável.
“O engraçado é que você tem várias semelhanças com Emily,” César comentou.
Mello ficou surpreso com a observação.
“Como o corte de cabelo, por exemplo,” César continuou, gesticulando para a cabeça de Mello. “Apenas mudando a cor, de ruivo para um loiro amarelado.” “Mas o senso de responsabilidade é o mesmo. A precisão, o foco no trabalho. Ela era a secretária mais eficiente que já tive, até você aparecer.”
Mello sentiu um rubor de satisfação. César raramente fazia elogios diretos.
“Obrigado, César,” Mello disse, forçando um sorriso leve.
César olhou para a rua por um momento, depois virou-se para Mello, e o olhar dele se tornou mais intenso, mais calculista. Ele inclinou-se um pouco para a frente, diminuindo a distância entre eles no assento traseiro do carro.
“Eu odeio ser forçado a ceder à pressão externa, Mello,” César declarou, a voz dele estava baixa. “A ideia de colocar você naquele cubículo barulhento me irrita. Sua eficiência vai cair pela metade, e eu terei que lidar com a ineficiência. E o Conselho continuará procurando por problemas, de qualquer maneira.”
Mello absorveu a confissão. Ele sabia que a mudança de mesa era tão inconveniente para César quanto para ele.
“Eu vou fazer o meu melhor, não importa onde eu esteja, César,” Mello garantiu.
César balançou a cabeça, um movimento curto de impaciência.
“Seu melhor não é o suficiente quando o ambiente é caótico. Você precisa de silêncio para se concentrar, Mello. É por isso que você está nesta sala comigo,” César disse. Ele fez uma pausa, os olhos dele não deixavam os de Mello. “O que me leva a uma ideia. Podemos ‘brincar’ um pouco.”
Mello franziu a testa, confuso com a escolha da palavra. “Brincar?”
César deu um sorriso que não alcançou os olhos, um sorriso profissional e astuto.
“Sim. Vamos dar ao Conselho e à imprensa o que eles querem ver, uma distância física, mas de uma forma que ainda beneficie o meu trabalho e o seu desempenho,” César explicou. Ele se ajeitou no assento. “Eu tenho um primo que trabalha na Solitare. Ele é o diretor da divisão de Arquivo e Pesquisa Histórica. O trabalho dele é muito mais calmo, muito menos visível. É no terceiro andar, em uma ala silenciosa. Ele tem um espaço extra.”
Mello esperou, ouvindo atentamente. A proposta parecia um desvio de rota inesperado.
“Eu vou realocar você para lá temporariamente,” César continuou. “Você ainda será meu secretário. Você fará a mesma lista de tarefas, organizará minha agenda e responderá meus e-mails. Mas fisicamente, você estará no escritório dele. Longe da atenção. Longe do meu escritório.”
“Eu continuaria trabalhando para você, mas no escritório do seu primo?” Mello perguntou.
“Exatamente. O primo, Lucca, não tem a demanda que eu tenho, mas ele precisa de um assistente ocasionalmente. Você fará o trabalho dele quando o meu for lento, o que raramente acontece. Mas a localização é o ponto principal. É calma, privada. É a única área da Solitare que se assemelha à privacidade que você tem aqui,” César disse. “Isso me garante sua eficiência, e o Conselho não terá mais motivos para reclamar da nossa ‘proximidade’.”
Mello pensou nas palavras de Mihael na noite anterior: *Você precisa traçar uma linha.*
“Isso não afetaria a sua imagem, César? Não pareceria que você está me escondendo?” Mello questionou.
“Não, pareceria que eu estou gerenciando os recursos. Diria ao Conselho que você está sendo ‘treinado’ em diferentes áreas para uma visão mais abrangente da empresa, começando pela pesquisa, que é essencial. Lucca é da família, e o Conselho não questiona a movimentação de pessoal para treinamento,” César explicou, mostrando o domínio que tinha sobre a burocracia da Solitare.
Mello considerou a proposta. Seria um ambiente de trabalho muito melhor do que o cubículo barulhento, e Mihael ficaria satisfeito com a distância física.
“Quando seria a mudança?” Mello perguntou.
“Podemos começar na próxima segunda-feira. Eu vou falar com Lucca hoje. Você terá tempo para se familiarizar com o novo local. Você ainda virá aqui de manhã para pegar a lista e o café, mas depois passará o dia no terceiro andar,” César detalhou.
Mello assentiu. “Parece ser uma solução muito boa.”
César sorriu novamente, desta vez parecendo mais genuíno.
“Não faço as coisas pela metade, Mello. Eu preciso de um secretário eficiente, e você provou ser um. Não vou sabotar isso por causa de fofocas,” César disse. Ele inclinou-se novamente, e Mello sentiu um cheiro suave e caro de colônia. “E, Mello, eu gosto de recompensar o bom trabalho.”
Mello olhou para ele, esperando a continuação.
“Se você aguentar o ritmo, a pressão, e a lista de tarefas até o final do ano, eu levo você comigo para Paris,” César declarou.
Mello piscou. “Paris?”
“Sim. A Mostra de Moda anual. É o maior evento de moda e arte da Solitare. Dura uma semana. Eu sempre levo o meu secretário principal. É uma oportunidade de networking e exposição que você não conseguiria em dez anos de trabalho normal. Tudo pago pela empresa, é claro,” César explicou.
Mello sentiu o sangue correr mais rápido nas veias. Ele nunca havia saído dos Estados Unidos. Paris. A Mostra de Moda. Era uma chance de vida.
“Eu... isso é uma oferta incrível, César,” Mello disse, tentando não soar muito ansioso.
“É um incentivo,” César corrigiu. “O trabalho será difícil, Mello. Você terá que ser o secretário perfeito, mesmo à distância. Mas se você cumprir, você estará em Paris comigo, no evento que define a moda global.”
Mello apertou a caneta na mão. Ele pensou na estabilidade financeira, na hipoteca, e agora, na viagem de Paris. Ele não podia falhar.
“Eu aceito,” Mello disse, a voz dele estava mais firme. “Eu serei o secretário mais eficiente que você já teve, no terceiro andar ou aqui.”
César assentiu, a satisfação dele era clara.
“Eu sei que será,” César respondeu. Ele olhou para a janela. “Estamos quase chegando ao ateliê de Jean-Pierre. Prepare-se para anotar as decisões de cores e os surtos de temperamento.”
O carro parou em frente a um prédio de tijolos escuros em uma área mais artística da cidade. Jorge, o motorista, saiu e abriu a porta para César.
César saiu do carro. Mello saiu em seguida, pegando o caderno e a caneta. Ele ajustou o blazer, sentindo uma nova determinação. Ele não estava mais apenas tentando manter o emprego; ele estava trabalhando para uma meta. Paris.
Eles entraram no prédio. O interior era moderno e industrial, com paredes de concreto e luzes brilhantes. Eles foram direcionados para o segundo andar, onde havia um grande estúdio.
O estúdio estava cheio de tecidos, manequins e pessoas vestindo roupas de alta costura. Um homem magro e dramático, com cabelos longos e pretos, aproximou-se de César. Mello reconheceu Jean-Pierre, o estilista.
“César, meu amor! Você está atrasado!” Jean-Pierre exclamou, abraçando César efusivamente.
César manteve a compostura. “Jean-Pierre, você sabe que eu sou pontual. O trânsito de Nova York não é.”
Jean-Pierre soltou César e olhou para Mello.
“E quem é este anjo? Seu novo assistente?” Jean-Pierre perguntou, olhando Mello de cima a baixo.
“Este é Mello. Ele fará as anotações,” César disse, sem dar detalhes. “Mello, este é Jean-Pierre. Ele é responsável pelo caos que você está vendo.”
Mello assentiu. “Prazer em conhecê-lo.”
Jean-Pierre sorriu. “Um prazer, anjo. Tenho certeza de que você terá muito o que anotar. O inverno é sobre excesso, meu caro, excesso!”
Jean-Pierre conduziu César e Mello para uma área com cadeiras na frente de uma pequena passarela improvisada.
A prova de roupas começou. Uma modelo após a outra desfilou, vestindo casacos pesados, vestidos longos e acessórios extravagantes. Jean-Pierre tagarelava sobre tecidos, texturas e as “inspirações trágicas” por trás de cada peça.
Mello começou a anotar. Ele não entendia muito de moda, mas anotava as descrições de César.
“O veludo é bom, mas o forro está muito pesado,” César comentou em uma peça. Mello anotou: *Veludo – Forro pesado – Revisar peso.*
Em outra peça, César franziu a testa. “O tom de azul está errado. Parece barato.” Mello anotou: *Tom de azul – Precisa ser mais escuro.*
A reunião durou cerca de uma hora e meia, exatamente como César havia previsto. Jean-Pierre dramatizou a rejeição de um colete e abraçou César em agradecimento pela aprovação de um vestido de seda.
Mello manteve-se focado, registrando cada detalhe e decisão. Ele tinha que provar a César que era capaz de lidar com a complexidade do trabalho, mesmo em um ambiente tão incomum.
Quando a prova terminou, César levantou-se.
“Mello, você tem o resumo?” César perguntou.
Mello fechou o caderno. “Sim, César. Três peças precisam de ajuste no tecido, duas na cor, e o colete foi cortado.”
“Excelente. Jean-Pierre, eu te mando as notas detalhadas de Mello por e-mail até o final do dia. Preciso voltar para o escritório,” César disse.
Eles se despediram de Jean-Pierre e voltaram para o carro.
No caminho de volta, Mello revisou as anotações, organizando os tópicos para o e-mail.
“Então, Lucca no terceiro andar,” Mello disse, confirmando. “Na próxima segunda-feira.”
“Sim. Vou garantir que Lucca prepare o espaço dele para você. Ele vai gostar de ter alguém quieto por perto. Lucca não gosta de drama,” César respondeu, olhando para Mello.
“E sobre a nossa... distância profissional?” Mello perguntou.
César sorriu levemente. “Enquanto você estiver no terceiro andar, a percepção será de que eu o afastei. E a partir de amanhã, você não virá comigo para compromissos externos, a menos que seja estritamente necessário. Se tivermos que sair juntos, Jorge irá buscar você em um local separado, ou você irá de táxi.”
Mello entendeu a estratégia. Eles criariam uma logística que não deixaria rastros para a imprensa.
“Entendido. Sem mais fotos de ‘encontros matinais’,” Mello disse.
César encostou a cabeça no assento e fechou os olhos.
“Você está aprendendo rápido, Mello. Você está se adaptando à forma como a Solitare funciona. É tudo sobre controle de narrativa,” César disse, a voz dele estava quase um sussurro.
O carro chegou ao prédio da Solitare. Eles subiram para o vigésimo quinto andar.
Mello foi para sua mesa e começou a digitar o resumo da prova de roupas. Ele sentia a excitação da promessa de Paris. Ele não deixaria que Mihael, a imprensa, ou o Conselho interferissem nisso.
O resto do dia foi gasto em tarefas administrativas. Mello ligou para Lucca, o primo de César, para confirmar os detalhes da mudança. Lucca era um homem com uma voz calma e profissional.
“César me falou sobre você, Mello. Bem-vindo ao terceiro andar,” Lucca disse. “É um ambiente tranquilo. Eu te mostro a sua mesa na segunda-feira. Não se preocupe com o meu trabalho. O foco é César.”
Mello agradeceu, sentindo-se um pouco mais aliviado. O novo plano era concreto.
Ele terminou a lista de trinta e uma tarefas às sete e meia da noite, enviando a agenda de César para a próxima semana e organizando os e-mails.
“Terminei, César,” Mello disse.
César assentiu, olhando para ele. “Bom. Agora, a partir de amanhã, você estará aqui no meu escritório, mas com o plano de se mudar na segunda-feira. Evite sair comigo hoje. Peça um táxi. Evite dar mais material para a imprensa.”
Mello pegou o telefone e chamou um táxi. Ele guardou os pertences, sentindo que a semana de trabalho havia sido um turbilhão de estresse, mas também de progresso significativo. Ele havia garantido a estabilidade do emprego e ganhado uma meta.
“Boa noite, César,” Mello disse, dirigindo-se à porta.
“Boa noite, Mello. E lembre-se: Paris.”
Mello sorriu, e a porta fechou atrás dele. A promessa pairava na cabeça dele. Ele tinha uma linha para traçar com Mihael, e agora, um destino para alcançar com César. O táxi chegou, e Mello entrou, ligando para Mihael, sentindo-se mais confiante em lidar com a discussão que viria, pois ele tinha um plano sólido para a nova semana de trabalho e a promessa de Paris para garantir que ele se manteria focado no trabalho.
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