Capítulo 2: A Rotina Se Estabelece Mello saiu do prédio e parou na calçada. A noite já tinha caído. As luzes da cidade brilhavam ao redor, carros passavam na rua, pessoas caminhavam apressadas voltando do trabalho. Ele respirou fundo. O ar frio entrou nos pulmões e o ajudou a clarear a mente depois de tantas horas dentro do escritório. Caminhou até o ponto de ônibus na esquina e sentou no banco de metal. O ônibus demorou quinze minutos para chegar. Mello subiu, pagou a passagem e encontrou um assento perto da janela. Encostou a cabeça no vidro frio enquanto o veículo se movia pelo trânsito lento. Pensou no comentário de César. "Você ainda está aqui. Interessante." O que aquilo significava? Teresa tinha mencionado que César demitira os dois últimos secretários na primeira semana. Mello completara apenas metade das tarefas. Será que isso era suficiente? O ônibus parou no terminal central. Mello desceu e pegou outra linha que o levaria até o bairro onde morava. Quarenta minutos depois, finalmente chegou em casa. Abriu a porta do apartamento pequeno que dividia com um colega de faculdade. A sala estava vazia. Pedro devia estar no quarto ou tinha saído. Mello jogou a pasta no sofá e foi direto para o quarto. Tirou os sapatos que torturavam os pés o dia inteiro. Trocou a roupa de trabalho por calça de moletom e camiseta velha. Voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Tinha sobras de arroz e frango de dois dias atrás. Esquentou no micro-ondas e comeu direto da vasilha, sem vontade de sujar pratos. Depois do jantar rápido, pegou o notebook e abriu num canto da mesa. Precisava entender melhor como funcionava o trabalho. Pesquisou sobre a Solitare na internet. A revista tinha vinte anos de existência. Publicava matérias sobre moda, cultura, eventos sociais e política. A tiragem mensal era de sessenta mil exemplares, igual César tinha mencionado. O site mostrava fotos de eventos que a revista cobria, sempre com pessoas elegantes, lugares caros, tudo muito diferente do mundo de Mello. Encontrou informações sobre César também. Ele assumira o cargo de diretor executivo há três anos. Antes disso, trabalhara como editor em outra revista menor. Sob a direção dele, a Solitare triplicara as vendas e se tornara a revista mais influente do país naquele segmento. Mello fechou o notebook. Já passava da meia-noite. Precisava dormir para acordar cedo no dia seguinte. Deitou na cama, mas o sono não veio rápido. Ficou olhando para o teto, repassando mentalmente tudo que acontecera no primeiro dia. Os erros. As dificuldades. O café derramado. A impressora travada. Mas também tinha feito algumas coisas certas. Confirmara o almoço. Organizara documentos. Acompanhara César na reunião e anotara tudo. Eventualmente o cansaço venceu e ele adormeceu. *** O despertador tocou às seis da manhã. Mello levantou, tomou banho rápido, vestiu a mesma roupa de trabalho do dia anterior. Precisaria comprar mais camisas durante a semana. Comeu duas torradas com manteiga de pé na cozinha. Pegou a pasta e saiu. O trajeto até a Solitare levou uma hora. Ônibus lotado, pessoas empurrando, barulho constante. Quando finalmente desceu em frente ao prédio, já eram sete e meia. Entrou no saguão. A mesma recepcionista de ontem trabalhava no balcão. Ela olhou para Mello e acenou com a cabeça, uma forma silenciosa de cumprimento. Mello pegou o elevador até o vigésimo quinto andar. As portas se abriram. O corredor estava vazio e silencioso, muito diferente do caos do dia anterior. Caminhou até o escritório de César. A porta estava destrancada. Empurrou e entrou. César já estava lá. Sentado na mesa principal, digitava algo no computador. Tinha uma xícara de café ao lado. Vestia terno cinza hoje, sem gravata, assim como ontem. Olhou para cima quando Mello entrou. "Chegou cedo." "Achei melhor." Mello colocou a pasta sobre a própria mesa. "Quer café?" "Sim, obrigado." César apontou para uma cafeteira no canto da sala que Mello não tinha visto no dia anterior. "Aprenda a fazer do jeito que eu gosto. Três colheres de pó para cada litro de água. Sem açúcar." Mello foi até a cafeteira. Encontrou o pó de café no armário embaixo. Mediu três colheres, colocou água, ligou a máquina. Enquanto esperava, ligou o computador e digitou a senha. A cafeteira apitou. Ele encheu duas xícaras. Levou uma para César, que pegou sem desviar os olhos da tela. Bebeu um gole. "Melhor que ontem." Mello voltou para a própria mesa com a segunda xícara. Bebeu devagar, sentindo a cafeína começar a fazer efeito. César se levantou e caminhou até ele. Estendeu uma folha de papel. "Sua lista de hoje." Mello pegou. Olhou. A lista tinha trinta itens. Trinta. Ele releu para ter certeza de que tinha contado certo. Sim, trinta tarefas diferentes. "São mais que ontem," Mello disse. "É. Você conseguiu fazer metade de vinte ontem. Hoje quero ver você fazer três quartos de trinta." Mello fez as contas mentalmente. Três quartos de trinta dava vinte e dois ou vinte e três itens. Quase o dobro do que tinha conseguido completar no dia anterior. "Vou tentar." "Não tente. Faça." César voltou para a própria mesa. Mello olhou para a lista novamente. Leu cada item com atenção dessa vez, tentando entender o que cada um precisava. O primeiro dizia: "Imprimir contratos revisados - pasta azul servidor - 30 cópias cada". Ele abriu o explorador de arquivos no computador. Encontrou a pasta azul no servidor. Tinha três documentos diferentes. Mandou imprimir trinta cópias de cada. Enquanto a impressora trabalhava, passou para o segundo item: "Agendar reunião com departamento de design - quarta-feira 15h". Pegou o telefone e discou o ramal do design. Alguém atendeu no terceiro toque. "Design, bom dia." "Bom dia. Estou ligando para agendar uma reunião com o César na quarta-feira às quinze horas." "Deixe eu verificar." Pausa. Som de teclas. "Pode ser. Sobre o que será?" Mello olhou para a lista. Não tinha mais detalhes. "Só um momento." Ele cobriu o telefone com a mão. "César, a reunião de quarta com o design é sobre o quê?" "Novas capas para a edição de junho." César respondeu sem olhar. Mello voltou ao telefone. "Sobre as novas capas da edição de junho." "Entendido. Está marcado." "Obrigado." Ele desligou e riscou o segundo item. Dois de trinta. Precisava acelerar. Os itens seguintes incluíam organizar arquivos por categoria, responder emails específicos que César tinha marcado como importantes, confirmar uma entrega de material gráfico, e ligar para um fornecedor sobre atraso no pagamento. Mello trabalhou metodicamente. Fez uma tarefa por vez, sem pular entre elas. Descobriu que isso funcionava melhor que tentar fazer várias coisas simultaneamente. Às nove da manhã, Teresa entrou no escritório carregando uma pasta grande. "César, trouxe os layouts que você pediu." "Coloque na mesa do Mello. Ele vai organizar por ordem de prioridade." Teresa caminhou até a mesa de Mello e depositou a pasta. Olhou para ele. "Ainda vivo?" "Ainda." Ela sorriu. "Bom sinal. Segundo dia é sempre mais difícil que o primeiro." "Por quê?" "No primeiro dia você não sabe o que esperar. No segundo, sabe, e percebe o quanto é difícil." Teresa saiu antes que Mello pudesse responder. Ele abriu a pasta que ela deixara. Tinha uns vinte layouts diferentes de capas de revista. Precisava organizá-los por ordem de prioridade, mas como saber qual era a prioridade? Levantou e foi até César. "Como eu sei qual layout é prioridade?" "Olhe as anotações em cada um." Mello voltou para a pasta. Examinou os layouts com mais atenção. Alguns tinham notas escritas à mão no canto: "urgente", "revisar até sexta", "baixa prioridade", "aprovar hoje". Separou em quatro pilhas diferentes baseado nas anotações. Organizou cada pilha em ordem alfabética por nome do designer. Levou quarenta minutos para terminar, mas quando acabou, tudo estava ordenado e claro. Colocou as pilhas de volta na pasta e a deixou na mesa de César. Ele olhou rapidamente. "Bom trabalho." Mello voltou para a própria mesa. Olhou para o relógio na parede. Nove e cinquenta. Olhou para a lista. Tinha completado sete itens até agora. Continuou trabalhando. Respondeu três emails importantes. Ligou para o fornecedor sobre o pagamento atrasado. O homem do outro lado da linha ficou nervoso, disse que o pagamento estava processando, que chegaria na próxima semana. "César quer confirmação por escrito," Mello disse, seguindo a instrução que estava escrita na lista. "Vou enviar por email hoje ainda." "Obrigado." Mais duas tarefas completas. Nove de trinta. O telefone na mesa de Mello tocou. Ele atendeu. "Escritório do César Marchetti." "Bom dia. É da gráfica Impressa. Precisamos falar sobre a tiragem do próximo mês." "Um momento." Mello cobriu o telefone. "César, é da gráfica Impressa. Sobre a tiragem do próximo mês." César estendeu a mão. Mello passou o telefone para ele. "Alô? Sim, sessenta mil como sempre... Não, não vamos aumentar ainda... Confirmo até amanhã." Ele desligou e devolveu o telefone para Mello. "Adicione na lista: ligar para a gráfica amanhã confirmando a tiragem." Mello anotou num papel separado. Não estava na lista original, mas César pedira, então precisava fazer. Mais pessoas começaram a chegar no escritório. Às dez da manhã, a sala já tinha cinco ou seis funcionários diferentes, todos trazendo documentos, fazendo perguntas, pedindo aprovações. César atendia todos com a mesma impaciência de sempre. Respondia rápido, às vezes cortando as pessoas no meio da frase, sempre direto ao ponto. Mello observou enquanto organizava mais documentos. César nunca pedia para ninguém repetir. Nunca pedia desculpas por interromper. Simplesmente dizia o que precisava ser dito e esperava que as pessoas obedecessem. Com Mello, porém, era diferente. Quando Mello perguntava algo, César respondia. Às vezes com impaciência, mas sempre respondia. Explicava onde encontrar arquivos. Mostrava como fazer coisas que Mello não sabia. "Mello." César chamou. "Venha aqui." Mello se levantou e foi até a mesa principal. César apontou para a tela do computador. "Vê esse relatório? Preciso que você aprenda a fazer isso. Todo fim de mês você vai precisar compilar os dados de vendas e criar um documento como este." Ele passou os próximos dez minutos explicando como acessar os dados, como organizá-los, que formato usar. Mello anotou tudo num caderno. Enquanto César explicava, Teresa passou pela porta. Olhou para os dois, pareceu surpresa, mas não disse nada e continuou andando. "Entendeu?" César perguntou. "Sim. Acesso os dados pelo sistema interno, organizo por região de venda, crio gráficos comparativos com o mês anterior." "Correto. Próximo relatório é daqui a duas semanas. Você vai fazer sozinho." "Certo." Mello voltou para a própria mesa. Riscou mais um item da lista. Dez de trinta. O restante da manhã passou rápido. Ele confirmou duas reuniões diferentes, organizou uma pilha de contratos antigos em ordem cronológica, e arquivou documentos que César tinha marcado como concluídos. Ao meio-dia, César se levantou. "Vou almoçar. Volto em uma hora." Ele saiu sem esperar resposta. Mello ficou sozinho no escritório. Aproveitou o silêncio para fazer as tarefas que exigiam mais concentração. Respondeu mais emails. Organizou a agenda de César para o resto da semana, verificando conflitos de horário. Encontrou dois conflitos. Uma reunião marcada para quinta às dez, mas César já tinha outro compromisso naquele horário. Mello ligou para remarcar uma delas. A pessoa do outro lado não ficou feliz, mas aceitou mudar para sexta de manhã. Quando César voltou às treze horas, Mello já tinha completado dezessete itens. "Como está a lista?" César perguntou. "Dezessete de trinta." César olhou para o relógio na parede. "São treze horas. Você tem até as dezoito para terminar mais cinco no mínimo." Mais cinco significaria vinte e dois no total. Exatamente os três quartos que César tinha pedido de manhã. "Vou conseguir." "Ótimo." César sentou na própria mesa e voltou a trabalhar. Mello continuou. Os próximos itens eram mais complicados. Precisava revisar um contrato com um fotógrafo, verificando se todos os termos estavam corretos. Nunca tinha feito isso antes. Leu o contrato três vezes. Comparou com outros contratos antigos que encontrou nos arquivos, tentando entender o padrão. Levou quase uma hora, mas finalmente terminou e marcou os pontos que pareciam diferentes do padrão normal. Levou o documento para César. "Revisei o contrato. Marquei três cláusulas que parecem diferentes dos contratos anteriores." César pegou e leu rapidamente. Olhou para os pontos que Mello tinha marcado. "Este aqui está errado mesmo. Boa percepção." Ele circulou a cláusula com caneta vermelha. "Mande de volta para o advogado revisar. Os outros dois estão corretos, são exceções específicas deste fotógrafo." "Entendi." Mello voltou para a mesa. Enviou um email para o departamento jurídico explicando a situação. Riscou mais um item. Dezoito de trinta. Às quinze horas, o telefone tocou novamente. Mello atendeu. "Escritório do César Marchetti." "Boa tarde. É do restaurante Bianco. Temos uma reserva para o senhor Marchetti amanhã às treze horas, mas precisamos confirmar o número de pessoas." Mello cobriu o telefone. "César, restaurante Bianco. Quantas pessoas para o almoço de amanhã?" César parou de digitar. "Cancela. Não vou mais." Mello voltou ao telefone. "Precisamos cancelar a reserva. Desculpe o inconveniente." "Sem problema. Boa tarde." Mello desligou. Olhou para a lista. Um dos itens era exatamente confirmar aquela reserva. Tecnicamente tinha completado a tarefa, mesmo que fosse para cancelar em vez de confirmar. Riscou. Dezenove de trinta. Continuou trabalhando. Organizou fotos de um evento que a revista tinha coberto semana passada. Arquivou recibos de despesas. Fez uma planilha com os gastos do departamento no último mês. As horas passaram. Mais pessoas entraram e saíram do escritório. César atendia ligações, assinava documentos, dava ordens. Mello percebeu um padrão. César falava com todos de forma curta, direta, sem paciência para explicações longas. Mas quando Mello pedia ajuda, César parava o que estava fazendo e explicava. Às vezes com frases curtas e tom impaciente, mas sempre explicava. Às dezessete horas, Mello tinha completado vinte e dois itens. Faltavam oito, mas ele já tinha atingido a meta que César pedira. Olhou para os itens restantes. Dois eram sobre organizar arquivos que não eram urgentes. Três eram emails que podiam esperar até amanhã. Os outros três eram tarefas que dependiam de outras pessoas responderem primeiro. Decidiu continuar trabalhando. Começou a organizar os arquivos não urgentes, criando um sistema de pastas no computador que facilitaria encontrar documentos depois. Às dezoito horas, a maioria das pessoas tinha ido embora. O escritório ficou quieto novamente. Mello terminou de organizar os arquivos e começou a responder os emails que podiam esperar. Estava no meio do terceiro email quando César falou. "Você passou das seis." Mello olhou para o relógio. Dezoito e quinze. "Estava terminando alguns emails." "Quantos itens você completou?" "Vinte e cinco." César parou de digitar. Virou a cadeira para olhar diretamente para Mello. "Vinte e cinco de trinta." "Sim. Os que faltam dependem de outras pessoas responderem, ou podem esperar até amanhã sem problema." "Você completou mais que os três quartos que pedi." "Tive tempo." César ficou em silêncio por um momento. Mello não conseguia decifrar a expressão dele. "Você está se saindo melhor que eu esperava," César disse finalmente. Mello sentiu algo estranho no peito. Não era exatamente felicidade, mas talvez alívio. Ou satisfação por ter feito um bom trabalho. "Obrigado." "Amanhã a lista vai ser do mesmo tamanho. Quero que você complete tudo." "Vou fazer." César acenou com a cabeça e voltou a trabalhar no computador. Mello juntou as coisas sobre a mesa. Desligou o computador. Pegou a pasta. Levantou para sair, mas parou. Olhou para César, que continuava digitando, concentrado na tela. "César?" "Sim?" "Por que você me contratou?" César parou de digitar. Virou a cabeça. "Por quê quer saber?" "Eu não tinha experiência. Não sabia fazer metade das coisas que você precisa. Mas mesmo assim me contratou." "Você acha que foi erro?" "Não sei. Só quero entender." César se recostou na cadeira. Cruzou os braços. "Os dois últimos secretários que tive tinham experiência. Currículos perfeitos. Referências excelentes." Ele fez uma pausa. "Duraram menos de uma semana cada um. Sabem por quê?" "Não." "Porque desistiam. O trabalho era difícil demais, o ritmo muito rápido, eu muito exigente. Eles reclamavam, faziam corpo mole, e eventualmente paravam de vir." Mello escutou sem interromper. "Quando li seu currículo, vi que você não tinha experiência. Nenhuma. Mas você apareceu para a entrevista mesmo assim. Respondeu todas as perguntas com honestidade. Admitiu que não sabia fazer as coisas, mas disse que aprenderia." César se levantou e caminhou até a janela. Olhou para a cidade lá embaixo. "Prefiro alguém sem experiência que está disposto a aprender, do que alguém experiente que acha que já sabe tudo e não precisa se esforçar." Mello processou as palavras. Começava a entender. "Então você me contratou para ver se eu desistiria ou não." "Exatamente." César se virou. "E até agora, você não desistiu." "Não vou desistir." "Ótimo. Porque eu não tenho paciência para treinar outro secretário tão cedo." Mello quase sorriu. Quase. "Vejo você amanhã, então." "Até amanhã." Mello saiu do escritório. Caminhou pelo corredor vazio até o elevador. Apertou o botão e esperou. As portas se abriram. Ele entrou e pressionou o botão do térreo. Enquanto descia, pensou no que César tinha dito. Preferia alguém disposto a aprender do que alguém que achava que já sabia tudo. Mello podia trabalhar com isso. Podia aprender. Podia melhorar. Pela primeira vez desde que começara o trabalho, sentiu que talvez conseguisse se adaptar a esse emprego. Mello saiu do prédio da Solitare e a friagem da noite o atingiu. Ele respirou fundo e caminhou na direção do ponto de ônibus. A satisfação pelo que César tinha dito sobre não desistir e estar disposto a aprender deu a ele um passo mais leve. Ele olhou para as luzes da torre de vidro, percebendo que as janelas do vigésimo quinto andar ainda brilhavam, indicando que César continuava lá dentro. A jornada de volta para casa foi mais tranquila que a da manhã. O ônibus não estava tão lotado, e Mello conseguiu um assento na primeira linha. Ele puxou o caderno onde anotara as instruções de César sobre o relatório de vendas e começou a revisar, tentando memorizar os passos. Chegou em casa por volta das sete e meia. Assim que abriu a porta do apartamento, viu uma mochila preta no chão da sala, perto do sofá. "Mello, que bom que chegou." Mihael saiu da cozinha, segurando uma garrafa de refrigerante. Ele tinha cabelos castanhos claros e vestia jeans e uma camiseta preta. "Mihael? O que você está fazendo aqui?" Mello perguntou enquanto deixava a pasta no chão e tirava os sapatos. Não era comum Mihael visitá-lo sem avisar, pois ele morava longe. "Vim te ver. Sua mãe disse que ela estaria fora a semana toda." Mihael colocou a garrafa sobre a mesa de centro. "Você sumiu, mal respondeu minhas mensagens ontem. Pensei em fazer uma surpresa." "É que... o trabalho é insano." Mello caminhou até Mihael e o abraçou rapidamente. "Primeiro dia, segundo dia. Muita coisa para fazer." "Percebi. Você mal tocou no telefone hoje." Mihael se afastou e olhou para Mello. "Você está acabado. Olhe para as suas olheiras." Mello passou a mão sob os olhos. Sentia o cansaço, mas a adrenalina das vinte e cinco tarefas completas ainda o mantinha desperto. "É o meu novo ritmo, parece." Mello sorriu fraco e foi para o quarto trocar de roupa. Mihael seguiu ele até a porta. "Pensei em pedir pizza. E a gente pode assistir a um filme depois." "Pizza parece ótimo. Mas sobre o filme..." Mello pegou a calça de moletom e a camiseta. "Estou morto de cansaço. Tive que aprender a mexer em dez programas diferentes hoje." Mello saiu do quarto com a roupa trocada. Ele sentou no sofá e esticou as pernas. Mihael sentou ao lado dele e colocou o braço em volta do ombro de Mello. Ele se inclinou para beijar Mello. Mello retribuiu o beijo, mas não demorou muito. "A gente pode ir para o quarto, então." Mihael sorriu de um jeito que Mello reconheceu. "Mihael, eu juro que estou exausto. Eu mal consigo manter meus olhos abertos." Mello afastou-se um pouco, pegando o celular para pedir a pizza. "Eu só queria pedir a pizza, comer e desmaiar na cama." Mihael tirou o braço do ombro de Mello. Ele sentou ereto, a expressão mudando. "Você me chama para vir até aqui, me diz que sua mãe está fora, e agora me diz que está cansado demais para sequer deitar comigo?" Mihael perguntou. Ele tentava manter a voz baixa, mas o tom estava carregado de frustração. "Eu não te chamei. Você veio de surpresa. E eu te disse, o trabalho é... é muito puxado. Hoje foi mais que o dobro de coisas para fazer." Mello ligou para a pizzaria e fez o pedido rapidamente, usando frases curtas e diretas. Quando desligou, Mihael já tinha se levantado do sofá. Ele caminhava pela sala, as mãos nos bolsos. "Mello, é o seu segundo dia. Duas semanas, no máximo, e você vai estar acostumado, certo? É um emprego de secretário, não é como se você estivesse salvando vidas." Mello se levantou também, sentindo a tensão aumentar. "É um emprego de secretário do diretor executivo da maior revista do país. Não é só atender telefone. Eu tenho que gerenciar a agenda dele, organizar relatórios financeiros, resolver problemas de logística, lidar com fornecedores irritados, e a lista de tarefas tem trinta itens por dia. Trinta." Mihael parou de andar e encarou Mello. "E por que você tem que fazer trinta coisas? Você acabou de entrar. Eles têm que te dar um tempo." "Não, eles não têm. César não tem tempo para ter paciência. Ele me contratou para ver se eu desistiria. Se eu não der conta, ele me demite e contrata o próximo. Os outros dois desistiram em menos de uma semana." Mello foi até a janela e olhou para a rua. "Eu não posso desistir." "Mas isso não é saudável, Mello. Você está deixando o emprego interferir na nossa vida." Mihael apontou para o sofá e a mochila dele. "Eu vim de longe, esperando passar um tempo com você, e você está agindo como se fosse um robô programado para trabalhar até a exaustão." "Eu estou agindo como alguém que finalmente conseguiu um emprego bom, em uma empresa importante, e está tentando não ser demitido no terceiro dia!" Mello se virou para ele. "Você não entende o ambiente. É caótico, é exigente. Mas se eu aguentar, se eu provar que sou útil, eu subo. Eu faço meu nome." Mihael suspirou. Ele foi até a geladeira e pegou a garrafa de refrigerante. Abriu e bebeu direto do bico. "Eu entendo que você quer o emprego, Mello. Mas se você já está tão exausto no segundo dia, como você vai aguentar um mês? Um ano?" Mihael sentou na cadeira da cozinha, apoiando os cotovelos nos joelhos. "Eu sou seu namorado, Mello. Eu estou aqui. Você não consegue tirar duas horas para mim?" "Eu consigo. Eu só não consigo ter energia para ir para a cama com você agora. Mas eu estou aqui. Eu posso deitar com você, podemos conversar, comer a pizza. Só que eu preciso dormir." Mello tentou suavizar o tom. "Por favor, não transforme isso em uma briga." "Não sou eu que estou transformando." Mihael colocou a garrafa sobre a mesa com um ruído seco. "É essa revista. É esse seu chefe. Você mal entrou lá e eles já estão te sugando. E você deixa. Você deixa eles te tratarem como um escravo porque você está desesperado para agradar um cara que grita com todo mundo." Mello apertou os lábios. "César não grita comigo. Ele é exigente, mas ele me explica as coisas. Ele me ensinou a fazer o relatório hoje, Mihael. Ele parou o que estava fazendo para me ensinar. Ele não faz isso com mais ninguém." "E por que ele faz com você?" Mihael perguntou, levantando uma sobrancelha. "O que você tem de tão especial que ele tem toda essa paciência?" A pergunta atingiu Mello de forma inesperada. Ele não sabia a resposta. Ele pensou na conversa que tivera com César antes de sair: a preferência por alguém disposto a aprender. "Porque eu estou disposto a aprender," Mello respondeu, repetindo as palavras de César. "Eu não estou lá para reclamar ou fazer corpo mole. Estou lá para fazer o que ele pedir, mesmo que sejam trinta coisas." "E o que isso faz de você? Um capacho?" Mihael balançou a cabeça. "Você é inteligente, Mello. Você podia ter arrumado um emprego melhor, que te valorizasse mais do que te exaurir." "Esse emprego me valoriza. Ele me paga bem. Ele me coloca no centro de uma empresa importante." Mello foi até o armário e tirou dois pratos, embora soubesse que acabariam comendo na caixa da pizza. "Eu só preciso de um tempo para pegar o ritmo. É o segundo dia." A campainha tocou. Mello agradeceu pela interrupção e foi atender a porta. Pegou a pizza e pagou o entregador. Quando voltou para a sala, Mihael continuava na mesma posição, parecendo irritado. Mello colocou a caixa da pizza na mesa de centro. "Vem. Pelo menos vamos comer." Mihael se levantou, mas a tensão permanecia no ar. Eles sentaram no sofá e Mello abriu a caixa. O cheiro de queijo e orégano preencheu o ambiente. Eles comeram em silêncio por um tempo. Mello tentou puxar conversa, perguntando sobre a faculdade de Mihael, mas ele respondia com monossílabos. "Olha," Mello disse, colocando o pedaço de pizza na caixa. "Eu sinto muito que você tenha vindo e eu esteja assim. Eu realmente queria aproveitar você. Mas eu não consigo fingir que estou cem por cento. Eu preciso estar na Solitare às sete e meia amanhã, e eu preciso estar preparado." Mihael olhou para ele. "Eu sei, Mello. É só que... você sempre foi meu namorado, não o escravo de um diretor. E eu sinto que estou perdendo você para esse trabalho." "Você não está me perdendo. Eu só estou me adaptando." Mello estendeu a mão e tocou a dele. "Por favor, deita comigo. Eu só quero te abraçar e dormir." Mihael hesitou por um momento. Ele olhou para Mello, vendo a sinceridade e o cansaço profundo nos olhos dele. Ele finalmente cedeu, balançando a cabeça. "Tudo bem. Vamos para a cama. Mas sem o notebook." Mello sorriu, um sorriso genuíno de alívio. "Sem notebook." Eles terminaram a pizza e Mello levou a caixa e a garrafa para a cozinha. Ele lavou as mãos e foi para o quarto. Mihael já estava deitado na cama, usando o celular. Ele desligou a tela quando Mello entrou. Mello deitou ao lado dele. O colchão era pequeno, mas Mello se aconchegou perto do corpo de Mihael, sentindo o calor e o cheiro familiar dele. Mihael o abraçou e Mello fechou os olhos. O conforto do abraço era imediato e profundo, dissolvendo a tensão que o trabalho e a discussão tinham causado. Ele sentia a respiração de Mihael contra seu cabelo. "Boa noite, Mello." "Boa noite, Mihael." Em poucos minutos, Mello estava dormindo. Ele dormia profundamente, o corpo finalmente relaxando depois de dois dias inteiros de estresse. Mesmo exausto, ele sentia a determinação. Ele não desistiria. Ele provaria a César que ele tinha feito a escolha certa. O trabalho era a prioridade agora. Ele se agarrou a essa ideia enquanto dormia.

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