## Capítulo 8: A Dignidade Sob o Olhar Cético Matt levantou-se da poltrona de couro, o gesto marcando o fim da confissão peculiar de Randal. A ideia de quatro olhos literais era algo que o filósofo precisaria processar, mas o cansaço do Rei era palpável, o que indicava que a estranha condição biológica era, no mínimo, uma metáfora poderosa para a sobrecarga que Randal carregava. Matt não precisava de biologia para compreender a insônia do monarca. “Obrigado pela honestidade, Randal,” Matt disse, e ele não estava a ser irónico. “Eu aceito o quarto e o desafio. Eu vou procurar Luther, pois ele precisa de estabilidade.” Randal acenou com a cabeça, um olhar de alívio momentâneo cruzando o seu rosto exausto. “Eu pedi ao guarda para prepará-lo. Fique à vontade, Matt. Você encontrará os seus aposentos na ala de serviço, o primeiro à esquerda após a escadaria principal.” Matt saiu do laboratório, deixando Randal sozinho com os seus mapas marcados e a sua ciência. Ele caminhou pelos corredores silenciosos do castelo. O lugar era vasto, um labirinto de opulência e silêncio, e o luxo aqui era um contraste gritante com a miséria que ele tinha deixado no beco. Ele encontrou Luther numa sala pequena, mas confortável, que ficava próxima aos quartos de hóspedes. Luther tinha acabado de tomar banho, e ele estava vestido com um conjunto de roupas simples, mas limpas, que pertenciam à sua guarda-roupa de criança no castelo. Ele parecia menos selvagem, mas ainda assim a sua expressão estava marcada pela tristeza e pela incerteza. O guarda que tinha acompanhado Luther estava à porta, uma presença silenciosa e imponente, mas ele se afastou quando Matt se aproximou. A autoridade de Matt vinha do Rei, e isso era suficiente para o guarda. “Matt!” Luther exclamou, e o alívio na sua voz era evidente. Ele correu para o filósofo, e Matt o abraçou brevemente. O menino precisava de contacto e de certeza. “Eu estou aqui, Luther. O seu irmão me convidou para ficar,” Matt confirmou, e ele sentou-se num pequeno banco de madeira que estava perto da janela. A luz da tarde entrava na sala, iluminando o pó que flutuava no ar. Luther sentou-se no chão, perto dos pés de Matt. Ele estava a processar a informação. “Ele vai me ouvir agora?” “Ele vai, mas não imediatamente. Ele é um Rei, e ele tem responsabilidades que o impedem de ser apenas o seu irmão,” Matt explicou, e ele estava simplificando a complexidade da realeza para a compreensão de Luther. “Mas ele quer o seu bem. É por isso que ele me pediu para ficar e falar consigo.” Luther assentiu. Ele parecia aceitar a lógica, e ele estava feliz com a presença de Matt. “E ele falou sobre os seus olhos?” Luther perguntou, e ele estava ansioso para saber se Matt tinha acreditado na história dos quatro olhos. Matt sorriu. “Ele falou. É uma história interessante, mas eu preciso de mais evidências para acreditar em quatro olhos literais.” Matt mudou o foco para o bem-estar de Luther, e ele começou a perguntar sobre as experiências do menino. Eles conversaram sobre a fuga, sobre a figueira, e sobre a saudade da mãe. A conversa fluiu para o jardim, pois Matt sugeriu que eles descessem para respirar o ar fresco. Eles caminharam pelos vastos jardins do castelo, que eram meticulosamente cuidados, um símbolo da riqueza e da ordem do reino. Havia rosas, arbustos podados em formas geométricas e caminhos de cascalho que rangiam sob os seus pés. Matt e Luther estavam sentados num banco de pedra à sombra de um carvalho antigo, e a conversa deles era leve, mas significativa. Luther estava mais relaxado, e ele estava a partilhar os seus pensamentos com uma franqueza que só era possível com Matt. “Eu gosto das suas histórias, Matt,” Luther disse. “Elas não são entediantes como as dos meus tutores.” “Eles ensinam o que eles sabem. Eu ensino o que eu vivi,” Matt respondeu. “O mundo é o meu livro, e eu não sou um leitor, sou um observador.” A conversa voltou para Randal, e Luther estava a tentar explicar o seu ponto de vista sobre a condição peculiar do seu irmão. “Eu sei que ele disse que tem quatro olhos, e que é genético,” Luther começou. “Mas o segundo par, o de baixo, é estranho.” Matt inclinou-se para ouvir melhor, pois ele estava interessado na perspetiva de Luther, que era um observador direto. “O segundo par de olhos é mais desconfortável. Eles são menores, e ficam logo abaixo dos olhos normais,” Luther disse. “Parece que eles têm um problema de visão, porque quando o Randal está a usá-los, ele fica meio embassado.” Matt ponderou a observação. A explicação de Randal sobre os olhos alternados tinha sido confusa, mas a descrição de Luther adicionava uma camada de detalhe que sugeria que a anomalia não era apenas uma metáfora de cansaço. Os olhos extras pareciam ser menos funcionais, uma característica evolutiva que não tinha sido totalmente bem-sucedida. “E as pessoas se assustam quando os dois pares estão abertos ao mesmo tempo,” Luther adicionou, e ele olhou para o chão. “Isso acontece quando ele está muito, muito cansado, ou quando ele está a fazer uma descoberta científica. É raro, mas acontece, e a corte não gosta.” Matt compreendeu a implicação. O Rei estava a tentar esconder a sua singularidade para manter a dignidade da Coroa. O mito dos quatro olhos não era apenas uma lenda, era um traço que Randal tentava controlar. A insônia não era apenas cansaço, era o preço da sua linhagem. “O seu irmão está sob muita pressão para ser normal, Luther. E ele está a tentar proteger-se,” Matt explicou. “Mas não há nada de errado em ser diferente. A diferença é o que nos torna únicos.” Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas a ouvir o som dos pássaros no jardim. Luther estava a absorver a sabedoria de Matt. A conversa foi interrompida pela aproximação de uma figura imponente. Um homem alto e magro, vestido com as vestes formais da corte, caminhava em direção a eles, e ele não parecia estar a gostar do que via. Ele estava acompanhado por um guarda diferente, que era mais formal e rígido do que o que Matt tinha visto antes. O homem vestia um casaco de veludo escuro, e a sua expressão era de austeridade e desaprovação. Ele era Lorde Valerius, o Conselheiro Real, uma figura de poder e tradição no reino. Valerius era conhecido pelo seu apego estrito à etiqueta e pela sua desconfiança em relação a tudo o que era novo ou incomum. Valerius parou a poucos metros do banco, e ele não se incomodou em cumprimentar Matt. O seu olhar pousou sobre o filósofo, avaliando-o com um desprezo mal disfarçado. “Príncipe Luther,” Valerius disse, e a sua voz era fria e autoritária. “O Rei Randal me enviou para inspecionar o seu bem-estar e o seu novo… tutor.” Luther levantou-se e fez uma reverência apressada, pois ele estava habituado à formalidade da corte. Valerius não era um homem com quem se pudesse ser casual. Matt permaneceu sentado. Ele não era da corte, e ele não via necessidade de se submeter à hierarquia imposta por Valerius. O seu respeito vinha da dignidade, não do título. Valerius olhou para Matt, e a sua expressão endureceu. “Levante-se, forasteiro. Você está na presença de um Conselheiro Real.” Matt levantou-se lentamente, mas não por ordem de Valerius. Ele o fez para encarar o Conselheiro de igual para igual. “Eu sou Matt, Lorde Valerius. Eu sou um convidado do Rei, e eu não sou um tutor,” Matt corrigiu, e a sua voz era calma, mas firme. Valerius ignorou a correção. Ele estava a cumprir um dever, e ele tinha uma opinião formada sobre Matt antes mesmo de o conhecer. “O Rei Randal, em sua habitual impulsividade, acredita que você é adequado para aconselhar o Príncipe. Eu discordo veementemente,” Valerius declarou, e ele estava a falar alto o suficiente para que Luther ouvisse a sua desaprovação. Valerius começou a inspecionar Matt com um olhar crítico, e ele estava a tentar encontrar falhas na sua aparência e postura. “Você é um homem de origem humilde. As suas vestes, embora limpas, são de qualidade questionável,” Valerius observou, e ele estava a referir-se às roupas que Matt tinha recebido de Lena, a prostituta. “E o mais preocupante, Randal me informou que você é analfabeto. Um analfabeto a aconselhar o futuro da Coroa é uma afronta à dignidade de todo o Reino.” O ataque de Valerius não era pessoal, mas sim institucional. Matt representava a desordem, e a falta de respeito pela tradição. Matt ouviu Valerius em silêncio. Ele compreendia a lógica do Conselheiro. Valerius via o valor apenas na forma, e não no conteúdo. “Lorde Valerius, a dignidade não reside no tecido das minhas roupas, nem na minha capacidade de decifrar símbolos escritos,” Matt respondeu. “A dignidade é a capacidade de um homem de viver em verdade. É a capacidade de ver a realidade, e de agir com integridade.” Matt apontou para a pompa do castelo que os rodeava. “O senhor está cercado por formalidades e títulos. O senhor vive numa bolha de privilégio que o impede de ver a miséria que existe para além destas paredes. Essa cegueira, sim, é uma afronta à verdadeira dignidade.” Luther estava a assistir à discussão com atenção. Ele nunca tinha visto alguém falar com Valerius com tanta franqueza. Valerius ficou ofendido. O filósofo estava a inverter a lógica, e a acusá-lo de falta de dignidade. “Você é um insolente! Você está a questionar a minha lealdade ao Reino e a minha honra!” Valerius disse, e a sua voz estava mais alta. “Eu não questiono a sua lealdade, eu questiono a sua visão,” Matt corrigiu. “O seu Rei está a sofrer, e o seu Príncipe está solitário. O senhor está mais preocupado com a minha origem e a minha falta de educação do que com a condição humana dos membros da sua própria família real.” Matt estava a usar a verdade como arma, e Valerius não tinha defesa contra a franqueza. Valerius estava furioso, mas ele recuperou a sua compostura. Ele não podia descer ao nível de uma discussão de rua com um forasteiro. “O meu dever é proteger a ordem. E a sua presença é uma ameaça à ordem,” Valerius afirmou. Ele virou-se para Luther, ignorando Matt por um momento. “Príncipe, eu voltarei mais tarde. Você deve ficar nos seus aposentos até que o Rei decida sobre a sua nova companhia.” Valerius deu um passo para trás e olhou para Matt pela última vez, um olhar de ameaça silenciosa. “Eu voltarei ao Rei Randal. E eu exigirei a sua imediata remoção do castelo, Matt. Este lugar não é para andarilhos e para agitadores de consciências,” Valerius declarou. Matt não reagiu. Ele apenas observou Valerius, e a sua serenidade era a sua própria forma de desafio. Valerius virou-se bruscamente, e ele saiu do jardim, o guarda a segui-lo apressadamente. O Conselheiro estava a caminho do escritório de Randal, determinado a cumprir a sua ameaça. Luther olhou para Matt. “Ele é mau, Matt.” “Ele não é mau, Luther. Ele é um homem com medo. Ele tem medo da mudança, e ele tem medo da verdade. E o medo faz com que as pessoas ajam de forma cruel,” Matt explicou. “Mas ele é um obstáculo que precisamos de ultrapassar.” Matt e Luther voltaram para o banco, e eles continuaram a conversar, mas a atmosfera tinha mudado. A chegada de Valerius tinha introduzido um conflito real na sua estadia temporária no castelo. **---** Valerius não perdeu tempo. Ele marchou pelos corredores do castelo, a sua mente cheia de indignação. Ele foi diretamente para o escritório de Randal, onde o jovem Rei estava a tentar equilibrar as finanças do Reino com a sua pesquisa científica. Randal estava inclinado sobre uma mesa, e ele estava a fazer cálculos complexos sobre um pergaminho. A sua postura estava tensa. Valerius entrou na sala sem bater, pois ele sentia que a urgência da situação justificava a falta de etiqueta. “Randal! Eu acabei de voltar do jardim. Eu inspecionei o seu novo ‘tutor’,” Valerius disse, e o tom da sua voz não era de um Conselheiro a dar um relatório, mas sim de um superior a repreender um subordinado. Randal levantou a cabeça. Ele estava habituado à intensidade de Valerius, mas ele estava exausto demais para lidar com um confronto imediato. “Lorde Valerius, você poderia esperar um momento? Eu estou a tentar resolver um problema complexo de logística de abastecimento de grãos,” Randal pediu. “Não, eu não posso esperar! Este assunto é mais importante do que qualquer grão, Randal. É sobre a dignidade da Coroa!” Valerius exclamou. “Você cometeu um erro grave ao convidar aquele andarilho analfabeto para o castelo.” Valerius começou a descrever o encontro com Matt, exagerando a insolência do filósofo e minimizando a sua própria rigidez. “Ele é um agitador! Ele me insultou, e ele questionou a minha honra! Ele disse que eu sou cego para a realidade, e ele insinuou que a sua miséria é mais valiosa do que a nossa ordem,” Valerius relatou, e a sua voz tremia de raiva. “Ele é uma ameaça à estabilidade do nosso Reino. Ele irá encher a cabeça do Príncipe Luther com ideias perigosas sobre a igualdade e a revolução.” Randal ouviu o relato de Valerius, e ele estava a processar a informação. Ele compreendia a aversão de Valerius pela desordem, mas ele também reconhecia que Matt tinha uma forma única de chegar à verdade. “O que exatamente ele disse sobre a sua visão, Valerius?” Randal perguntou, pois ele estava interessado na perspetiva filosófica, não na ofensa pessoal. “Ele disse que a minha ‘cegueira’ era uma afronta à dignidade! É um absurdo! Eu sou o Conselheiro Real, eu sou o homem que mantém este Reino em ordem!” Valerius respondeu. Randal tirou os óculos e esfregou os olhos. Ele estava a sentir a pressão dos dois lados. Por um lado, a tradição e a ordem representadas por Valerius. Por outro lado, a verdade nua e crua que Matt oferecia, e que Randal sabia ser necessária para o bem-estar de Luther. “Eu o convidei para ajudar Luther, Valerius. E ele está a fazê-lo. Luther está mais calmo do que eu o vi em meses,” Randal defendeu. “Ele pode ser analfabeto, mas ele tem uma sabedoria que não se encontra em livros.” “Sabedoria de rua! É isso que você quer para o seu irmão, Randal?!” Valerius questionou. “Você está a arriscar a reputação da nossa família por causa de uma experiência tola! O Reino já está a sussurrar sobre a sua exaustão e o seu comportamento errático. Não adicione mais combustível ao fogo.” Valerius foi direto ao ponto. “Eu exijo a sua remoção imediata, Randal. Se ele ficar, eu não serei capaz de garantir a estabilidade do Conselho. Ele precisa de ser expulso do castelo ainda hoje.” Randal ponderou. Valerius tinha poder e influência, e ignorar o seu pedido poderia levar a problemas sérios no governo do Reino. Mas expulsar Matt seria admitir que a verdade era menos importante do que a convenção, e Randal não queria fazer isso. Ele precisava de Matt, e ele precisava de tempo. “Eu compreendo a sua preocupação, Valerius. Eu compreendo o seu apego à ordem,” Randal disse, e ele estava a tentar acalmar o Conselheiro. “Mas Matt não é um criminoso. Ele é um filósofo, e ele tem uma visão diferente.” Randal sabia que não podia confrontar Valerius diretamente, mas ele também não podia ceder. Ele precisava de um meio-termo. “Eu não o vou expulsar. Não agora,” Randal afirmou. “Eu preciso de mais tempo para avaliar a sua influência sobre Luther.” Valerius ficou chocado com a recusa. “Você está a brincar comigo, Randal?!” “Não. Eu estou a ser um Rei responsável. Eu estou a pesar os riscos,” Randal explicou. “Mas eu farei o seguinte: Eu vou conversar com Matt agora. Eu vou estabelecer regras claras para a sua estadia. Eu vou garantir que ele não interfira em assuntos de estado, e que o seu foco seja estritamente Luther.” Randal estava a adiar a decisão, o que era a sua forma habitual de lidar com a pressão. “E se ele violar essas regras, eu o removerei pessoalmente,” Randal prometeu. “Você terá a sua estabilidade, mas eu terei a chance de ajudar o meu irmão. É um compromisso.” Valerius hesitou. Ele queria a remoção imediata, mas a promessa de Randal era, pelo menos, um passo na direção certa. Valerius estava acostumado a conseguir o que queria, mas o jovem Rei era mais teimoso do que ele pensava. “Muito bem. Mas eu estarei a observar, Randal. E eu o responsabilizarei por qualquer perturbação que este forasteiro causar,” Valerius ameaçou, e ele não estava a tentar ser sutil. Valerius saiu do escritório, e Randal suspirou profundamente. O peso do Reino tinha acabado de aumentar. Randal pegou um sino de latão sobre a mesa, e ele tocou-o. O guarda que estava do lado de fora da porta entrou. “Chame o guarda que está a cuidar de Luther e peça-lhe para trazer Matt ao meu escritório,” Randal instruiu. “Eu preciso conversar com o filósofo sobre o seu encontro com Lorde Valerius.”

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