## Capítulo 7: O Mito dos Quatro Olhos Randal permaneceu imóvel. O jovem Rei não estava habituado a ter a sua identidade exposta com tamanha simplicidade, especialmente por um forasteiro que parecia ter acabado de sair de um beco. A verdade era um peso, e Matt tinha-o levantado sem esforço. Randal notou que Matt não tinha mudado a sua expressão, o que era talvez a parte mais desorientadora. Não havia reverência, nem espanto, apenas a constatação de um fato. O silêncio era tenso, e Luther, que ainda estava entre os dois, olhava para Randal, e depois para Matt, sem compreender a mudança na atmosfera. A revelação tinha passado por cima da cabeça de Luther, que apenas via o seu irmão mais velho e o seu novo amigo. Randal recuperou a sua compostura, e ele endireitou-se, ajustando o colete sobre a camisa. Ele estava acostumado a desviar o foco de conversas difíceis, e ele sabia que a situação exigia uma resposta rápida e prática, não uma discussão filosófica sobre a realeza. Ele desviou o seu olhar de Matt e virou-se para a porta. Havia um guarda que estava em pé no corredor, invisível, mas presente. O guarda era uma sombra silenciosa, um testemunho da rotina e da segurança do castelo. Randal fez um gesto breve e preciso com a mão. O guarda, que não tinha entrado na sala, compreendeu a instrução imediatamente, porque a comunicação não verbal era essencial na corte. Randal não precisava de gritar ou de explicar. O gesto significava que era preciso cuidar de Luther, e ele precisava de ser rápido. O Rei virou-se para Luther, e a sua voz era mais suave, mas ainda carregada de autoridade. “Luther, você precisa de um banho quente, e você precisa de comer algo substancial. Eu não posso falar com você agora, mas nós vamos conversar mais tarde,” Randal disse, e ele não estava pedindo, ele estava ordenando. Ele olhou para Matt e depois para o menino. “Você vai com o guarda. Ele vai levá-lo para os seus aposentos.” Luther hesitou. Ele não queria deixar Matt, e ele queria que Randal o escutasse imediatamente. “Mas Matt disse que você ia me escutar agora!” Luther protestou, e a sua voz era um pouco aguda. Randal suspirou, e ele colocou a mão no ombro de Luther. “Eu vou escutar, meu irmão. Mas primeiro, você precisa estar confortável. Você não pode falar sobre solidão quando está coberto de terra,” Randal explicou, e ele estava usando a lógica para persuadir o menino. “Matt vai ficar aqui. Ele vai ser meu convidado, e nós vamos conversar sobre você. Você confia em Matt, não é?” Luther olhou para Matt, e ele procurou a confirmação do filósofo. Matt apenas acenou com a cabeça, confirmando que ele estaria ali. A garantia de que Matt ficaria foi suficiente para acalmar Luther. O guarda entrou na sala, e ele estava vestido com a sua armadura polida. Ele era um homem grande, e ele parecia ser um pilar de força e disciplina. O guarda não falou, mas ele estendeu a mão para Luther, e o menino pegou a sua mão. Eles saíram do laboratório, e a porta se fechou silenciosamente atrás deles. Randal esperou um momento, e ele só relaxou depois que os passos de Luther desapareceram no corredor. A sua postura rígida cedeu um pouco, e o cansaço voltou para o seu rosto. Ele tirou os óculos e esfregou a ponte do nariz. Ele olhou para Matt, e ele sabia que a conversa não podia ser adiada. Ele era o Rei, mas ele estava exausto. “Eu aprecio a sua discrição, Matt. Poucas pessoas teriam mantido a compostura,” Randal disse, e ele estava sendo honesto. “Eu gostaria de convidá-lo a permanecer no castelo, pelo menos por um tempo.” Matt não respondeu imediatamente. Ele observou Randal, avaliando a sinceridade do convite. O filósofo não estava interessado em luxo, mas ele estava interessado em ajudar Luther. A sua estadia no castelo, mesmo que temporária, o colocaria no centro da desigualdade que ele tinha vindo observar. “Eu não preciso de luxo, Randal. Eu preciso de um lugar onde eu possa pensar,” Matt respondeu, e ele estava reiterando a sua filosofia. Randal acenou com a cabeça. “Eu sei. Você ficará em um dos quartos de hóspedes mais modestos da ala de serviço. É limpo, é privado, e você terá a sua privacidade. Não é o quarto de um Rei, mas é o melhor que eu posso oferecer para alguém que valoriza a simplicidade.” Matt aceitou a oferta com um aceno, mas ele esperou pela condição. Randal não estava fazendo caridade. Ele era um homem prático, e ele precisava de algo em troca. “A condição para a sua estadia é que você ajude ativamente na restauração do bem-estar emocional e psicológico de Luther,” Randal disse, e ele colocou os óculos de volta. A sua expressão era séria. “Eu sou um Rei, Matt, mas eu também sou um irmão que está falhando em cuidar do seu irmão mais novo. Eu preciso de ajuda, e eu preciso da sua perspectiva.” Matt concordou com a condição. Ajudar Luther era a sua intenção desde o momento em que o menino tinha fugido. “Eu farei isso, Randal. Mas a minha ajuda não será com teoria, e não será com livros. Será com a verdade,” Matt afirmou. Randal gesticulou em direção a uma pequena área de descanso que estava em um canto do laboratório. A área tinha duas poltronas de couro e uma mesa de madeira. Era um contraste com a desordem organizada dos instrumentos científicos. “Por favor, sente-se, Matt. Nós precisamos conversar, mesmo que seja brevemente, antes que eu tenha que voltar ao trabalho,” Randal disse. Matt caminhou até a área de descanso e sentou-se em uma das poltronas. O couro estava macio, mas Matt não se importava com o conforto. Ele estava focado na conversa. Randal sentou-se na poltrona oposta, e ele parecia um cientista exausto, e não um monarca. Ele estava cansado e sobrecarregado. Matt não perdeu tempo. Ele reiterou a sua observação de forma concisa. “Randal, a solidão de Luther é um reflexo direto da sua falta de afeto, e da sua sobrecarga de trabalho. Você o vê, mas você não o enxerga. Você está tentando ser um Rei e um cientista, e você esqueceu como ser um irmão,” Matt disse, e ele usou um tom que era direto, mas não acusatório. Randal ouviu Matt em silêncio. Ele não tentou se defender imediatamente, o que era incomum para um homem que estava acostumado a justificar as suas ações. Ele sabia que Matt estava falando a verdade. “Eu sei. Eu o amo, Matt, mas eu não sei como mostrar. Eu perdi os meus pais, e eu herdei um reino que está à beira do colapso, mesmo que pareça rico,” Randal confessou. Ele olhou para o grande mapa do reino que estava pendurado na parede. O mapa estava marcado com pequenos pontos vermelhos e azuis, que representavam dados que Matt não conseguia interpretar. “Eu estou tentando manter tudo junto, e eu estou tentando proteger Luther do fardo que eu herdei. Mas eu estou falhando.” Matt assentiu. A sobrecarga de Randal era evidente. Ele estava tentando carregar o peso de um reino e o peso da paternidade substituta, e ele estava fazendo isso sozinho. “Você não pode proteger Luther da dor da perda, Randal. Você só pode ensiná-lo a viver com ela. E isso exige tempo, e exige presença,” Matt observou. Randal colocou as mãos sobre a mesa, e ele olhou para elas. As suas mãos eram as mãos de um cientista, com dedos longos e unhas bem cuidadas, mas elas estavam tensas. “Eu vou pensar profundamente sobre a sua crítica, Matt. Eu a aceito,” Randal garantiu. Ele indicou que ele não resolveria o problema imediatamente, mas ele reconheceria a sua validade. “Mas agora, eu preciso de um momento de distração. Eu estou cansado de ser o Rei e o irmão falho.” Randal mudou o tópico, e ele olhou para Matt com uma curiosidade que era mais científica do que real. “Como você chegou à conclusão de que eu era o Rei? Você parecia alheio à política local. Você não sabia quem eu era, e você não se importava,” Randal perguntou. A sua curiosidade era genuína, porque ele estava acostumado a ser reconhecido imediatamente, e a ignorância de Matt tinha sido um refresco. Matt sorriu levemente. “Eu sou um filósofo, Randal. Eu observo, e eu coleto informações. Eu não leio livros, mas eu leio o mundo.” Matt explicou a sua linha de raciocínio. “Luther me falou sobre as marcas sob os seus olhos, as mesmas marcas que ele tentou imitar com carvão. Ele me disse que o seu pai era o Lorde Regente. Eu também ouvi, em algum lugar das minhas viagens, sobre um reino onde as marcas sob os olhos eram um sinal da linhagem real, um ritual de luto que era transmitido de geração em geração,” Matt disse. “Quando eu vi as marcas simétricas em você, e quando você confirmou o nome ‘Von Ivory’, eu liguei os pontos. O Lorde Regente está morto, e você, o alquimista, herdou a coroa.” Randal ouviu a explicação de Matt com atenção, e ele soltou uma risada breve e seca. Não era uma risada de alegria, mas sim de ironia. Ele estava rindo da lenda que o cercava. “A lenda é um mito, Matt. É uma superstição que a minha família alimenta para manter o misticismo,” Randal disse. Ele balançou a cabeça. “Não é um ritual de luto, e não é um símbolo de status. É puramente genético.” Randal tirou os óculos novamente, e ele esfregou os olhos. As marcas sob os seus olhos eram, de fato, mais escuras e simétricas, como se tivessem sido desenhadas. “É uma característica hereditária que é passada através da nossa linhagem. É por isso que Luther a copiou. Ele a vê como uma marca de pertencimento, mas é apenas um traço biológico que a corte transformou em um símbolo,” Randal explicou. Ele se inclinou para frente, e ele começou a falar sobre o seu próprio corpo com o desapego de um cientista que estava descrevendo um fenômeno. “Você me perguntou sobre as marcas, mas você não perguntou sobre a razão pela qual eu uso óculos,” Randal disse. Ele fez uma pausa dramática. “Eu tenho quatro olhos, Matt. Dois pares, que funcionam de forma alternada.” Matt ficou confuso. Ele olhou para Randal. Ele só via dois olhos. A ideia de quatro olhos era, na melhor das hipóteses, uma metáfora. “Eu não estou falando metaforicamente, Matt. Eu tenho quatro olhos literais,” Randal insistiu. Ele apontou para os seus olhos. “Um par é o que você está vendo agora. O outro par está escondido. Eles não são visíveis externamente, mas eles estão lá. Eles são o que me permite trabalhar por dias sem dormir.” Randal tentou explicar o conceito de forma confusa. Ele estava usando uma lógica científica que era alheia ao mundo de Matt. “Quando eu estou exausto, e eu não posso mais focar, um par de olhos fecha, e o outro par abre. O par que está fechado entra em um estado de repouso, enquanto o par que está aberto continua a trabalhar. É um mecanismo de sobrevivência que a nossa linhagem desenvolveu para lidar com a sobrecarga de trabalho,” Randal disse. Ele gesticulou com as mãos. “É por isso que eu uso óculos. É para camuflar a minha fadiga, e para dar aos meus olhos uma aparência de normalidade.” Matt estava escutando com ceticismo. Ele tinha ouvido muitas histórias estranhas em suas viagens, mas a ideia de quatro olhos literais era algo novo. Ele achou que Randal estava sob um estresse imenso, e que ele estava usando a ciência para racionalizar a sua exaustão. “Então, se os seus olhos funcionam alternadamente, como você dorme, Randal? Se um par está sempre aberto, você nunca tem descanso total,” Matt perguntou. Ele estava buscando a falha na lógica do Rei. Randal sorriu, e o sorriso era forçado. “Essa é a parte que me atormenta, Matt. A única forma de ambos os pares de olhos se fecharem simultaneamente, permitindo-me um sono profundo, é através de extremo prazer ou conforto,” Randal disse. Ele olhou para Matt com uma expressão que era estranha e perturbadora. “É uma lógica que a minha família tem lutado para entender por séculos. A dor e o estresse mantêm os olhos abertos. Apenas a felicidade e o conforto total podem fechá-los.” Randal concluiu a explicação com um suspiro, e a sua voz era um murmúrio. “E eu não sinto prazer ou conforto há muito tempo, Matt. Por isso, eu não durmo. Eu apenas trabalho.”

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