## Capítulo 12: O Confronto na Biblioteca Real Valerius saiu do quarto do Rei, a raiva contida e a frustração evidente, mas ele não podia demonstrar isso abertamente. Ele tinha perdido o confronto matinal porque Randal tinha fornecido uma autorização escrita, mas Valerius não se deixava derrotar facilmente. Ele caminhou pelos corredores, o barulho das suas botas no mármore ecoando a determinação que estava a crescer dentro dele. Ele precisava de uma arma mais eficaz do que acusações de indecoro. Matt tinha provocado uma reação física e emocional em Randal, algo que Valerius não conseguia há anos, e isso era mais perigoso do que qualquer sugestão de imposto. Valerius percebeu que não podia lutar contra Matt no campo da lógica ou da política pura, porque Matt operava com a estranha moeda da verdade e da simplicidade. Ele precisava encontrar uma fraqueza que fosse intrínseca ao castelo, algo que Matt, o andarilho, não pudesse desarmar com um sorriso ou uma história sobre o deserto. Ele tinha que entender a anomalia do sono de Randal, os Quatro Olhos. Ele tinha vivido no castelo por décadas, mas a linhagem real era envolta em segredos antigos, guardados em locais que ele, como Conselheiro Real, raramente tinha permissão para visitar. Ele acelerou o passo, ignorando os servos que se curvavam à sua passagem. Valerius dirigiu-se ao local mais isolado e restrito do castelo: a Biblioteca Real. A Biblioteca Real não era um local de consulta pública. Era um repositório de pergaminhos antigos, a história não editada da Casa de Von Ivory, e textos arcanos que lidavam com a alquimia e as peculiaridades biológicas da linhagem. Valerius tinha acesso, mas era um acesso formal e supervisionado. Ele usou a sua autoridade de Conselheiro Real, um título que lhe permitia requisitar quase tudo, e dirigiu-se ao Arquivista-Mor, um homem velho e silencioso chamado Hestus, que parecia mais um pergaminho mumificado do que um ser humano. Hestus estava no seu posto, atrás de uma mesa de carvalho maciço, o ar empoeirado da biblioteca parecendo não o afetar. “Lorde Valerius,” Hestus disse, e a sua voz era um murmúrio seco. “O que o traz a este templo de silêncio tão cedo?” “Assuntos de estado, Hestus,” Valerius respondeu, tentando manter o seu tom calmo. Ele não podia revelar o seu propósito, pois envolvia a fraqueza do Rei. “Preciso consultar os registros sobre a linhagem. Especificamente, os textos mais antigos que descrevem as anomalias biológicas da Casa de Von Ivory.” Hestus ergueu uma sobrancelha fina, mas não questionou. Hestus era um guardião, não um inquiridor. “A secção arcana da linhagem, claro. A Chave da Prata é necessária,” Hestus respondeu, pegando um anel de chaves. “Siga-me, Lorde Valerius. Tenha cuidado com o manuseio. O material é frágil, e o pó é… persistente.” Eles atravessaram as prateleiras principais, cheias de volumes de história política e finanças. O cheiro de papel velho e mofo era forte. Hestus conduziu Valerius para uma porta escondida atrás de uma estante de livros que parecia estar permanentemente fechada. Hestus inseriu a chave no buraco e girou, o som do mecanismo antigo soando alto no silêncio. A porta rangeu, revelando uma câmara mais pequena e escura. O ar ali era ainda mais pesado, e Valerius percebeu que a temperatura era ligeiramente mais baixa. Esta câmara continha os segredos que a Casa de Von Ivory preferia esquecer, mas não podia destruir. Hestus acendeu uma pequena lâmpada a óleo, e a luz bruxuleante iluminou fileiras de pergaminhos enrolados e volumes encadernados em couro escuro. “O que procura, Lorde Valerius?” Hestus perguntou. “Os registros sobre a visão e o sono. A condição dos Quatro Olhos,” Valerius especificou, evitando usar o termo anomalia. Hestus apontou para uma prateleira superior, onde os pergaminhos pareciam mais velhos e mais danificados. “A história da fundação da Casa, no início da Segunda Era. Aqueles textos contêm os detalhes. Procure pelos símbolos da coruja e do sono invertido,” Hestus instruiu, e depois saiu da sala, fechando a porta, deixando Valerius sozinho com os segredos. Valerius não perdeu tempo. Ele subiu na pequena escada de madeira, ignorando o perigo de quebrar os materiais antigos, e começou a puxar os pergaminhos indicados. A sua necessidade de desacreditar Matt tinha se transformado numa urgência para entender a ameaça. Ele desenrolou o primeiro pergaminho. A caligrafia era arcaica, mas legível para um homem educado como Valerius. Era um diário de um dos primeiros Reis, descrevendo a bênção e a maldição dos olhos duplicados. Valerius leu rapidamente. A condição era, de fato, biológica, uma mutação que permitia a alternância de ciclos de vigília, mas o pergaminho ia além da ciência. Descrevia a origem mística da condição. Os olhos adicionais não eram apenas um truque biológico; eram um canal para uma vigilância mágica. O texto explicava que a energia do sono não era perdida, mas sim armazenada, permitindo que o Rei permanecesse em um estado de alerta constante, uma espécie de vigília forçada para a proteção do reino. No entanto, o diário alertava para uma vulnerabilidade terrível. A condição, que Valerius tinha visto como uma força, era também um ponto fraco existencial. *“... e o único antídoto para a vigília eterna é o Conforto Inutilitário. A rendição total. Quando o portador dos Quatro Olhos encontra o Conforto, os dois pares de visão se fecham, e o corpo experimenta uma paz profunda. Esta paz é vital, pois evita que a energia armazenada se torne destrutiva. Mas, ai da Casa se o Conforto for induzido por um Estranho.”* Valerius franziu a testa. Ele releu a passagem. *Conforto Inutilitário*. O termo parecia ter sido retirado diretamente da boca de Matt. O pergaminho continuava, a tinta desbotada, mas as palavras eram claras. *“Se um Estranho, não ligado pelo Sangue ou pelo Voto, induzir o Conforto e a Rendição no Rei, o canal de vigilância se inverte. O Rei não armazena apenas energia; ele armazena a dependência. O Estranho se torna o Eixo. O sono se torna uma necessidade, e a necessidade se torna uma obsessão. Aquele que induz o sono ganha uma posse sobre a vontade do Rei, pois a mente que antes era livre e vigilante, agora anseia pela rendição. É uma Fraqueza Existencial que pode levar à ruína do Reino, pois a segurança do Rei estará nas mãos de um manipulador.”* Valerius sentiu um frio percorrer a espinha. O seu medo em relação a Matt não era apenas político; era profético e mágico. Randal tinha dormido, e tinha atribuído o seu descanso a Matt. Ele tinha permitido que Matt dormisse na sua cama. O bilhete que Valerius tinha lido era a prova da rendição de Randal. Matt não era apenas um agitador político; ele era, potencialmente, um parasita existencial que estava a obter controle sobre o Rei através de uma vulnerabilidade mágica esquecida. Valerius desceu da escada, o pergaminho apertado na mão. Ele precisava de mais contexto. Ele vasculhou a prateleira, encontrando um segundo volume, mais grosso, que parecia ser uma compilação de profecias e avisos sobre a linhagem. Ele folheou as páginas, procurando por mais menções ao “Eixo” ou ao “Conforto Inutilitário”. Ele encontrou um capítulo que descrevia a responsabilidade do Conselho Real em monitorar esta fraqueza. O Conselho deveria agir imediatamente para remover qualquer influência que ameaçasse o ciclo de vigilância do Rei. Valerius leu a responsabilidade e sentiu-se justificado. Ele não estava a ser um nobre intrometido; ele estava a cumprir um dever ancestral. No meio do volume, ele encontrou uma nota de rodapé que o fez parar. Era uma anotação recente, provavelmente de um arquivista mais moderno, descrevendo uma parte da condição que era frequentemente ignorada. O texto falava sobre um poder latente da Casa de Von Ivory. Em momentos de extrema irritação ou profunda tristeza, a condição dos Quatro Olhos ativava uma capacidade de projeção mental, um tipo de pressão invisível que podia influenciar sutilmente os pensamentos de quem estava próximo. Era um mecanismo de defesa, um grito silencioso de socorro ou raiva. Valerius ignorou a nota de rodapé. Não era relevante. Ele estava focado na ameaça de posse e dependência. O poder latente era uma distração. A prioridade era Matt, o Estranho, o Eixo que agora controlava o sono do Rei. Ele enrolou o pergaminho e saiu da câmara secreta, o volume antigo debaixo do braço. Ele encontrou Hestus na mesa principal. “Encontrei o que procurava, Hestus,” Valerius disse, e a sua voz era fria, calculista. “Espero que tenha sido esclarecedor, Lorde Valerius,” Hestus respondeu, sem emoção. Valerius não devolveu o pergaminho. “Estes documentos são de urgência de estado e devem ser levados ao meu gabinete para análise imediata. Registre a retirada, mas o conteúdo é para ser mantido em sigilo absoluto, sob pena de traição.” Hestus pegou a pena, e escreveu no seu livro de registro, aceitando a ordem sem questionar. Valerius tinha a prova de que precisava, mas ele não podia apresentar um pergaminho arcano ao tribunal sem ser ridicularizado. Ele precisava de evidências mais tangíveis, algo que ressoasse com a corte, algo político. Ele deixou a Biblioteca, o pergaminho e o volume a pesarem na sua mão. A sua mente estava a trabalhar num ritmo acelerado. Ele tinha que expor Matt como um traidor, um parasita que estava a enfraquecer o Rei tanto política quanto magicamente. Valerius sabia que a política era a arte da percepção. Se ele pudesse provar que Matt estava a usar a sua influência para minar a estabilidade financeira do reino, a corte o veria como um perigo. A proposta de Matt de taxar a nobreza, que Valerius tinha desconsiderado anteriormente, agora era a sua melhor arma. Era a prova de que Matt estava a agir contra os interesses do reino. Ele precisava de mais detalhes. Ele tinha que saber exatamente o que Matt estava a planear com Randal. E quem melhor para extrair informações do que o jovem e ingênuo Príncipe Luther? Valerius mudou a sua rota, abandonando a ideia de ir para o seu gabinete. Ele dirigiu-se ao Salão de Jantar. Ele tinha visto Luther lá antes, e se Randal estava lá, Matt estaria logo atrás dele. Ao chegar, Valerius viu que Randal ainda estava na mesa, envolvido numa conversa animada com Luther. A visão da felicidade de Randal e a presença do seu irmão era perturbadora para Valerius, que estava acostumado com o Rei ser uma figura distante e cansada. Valerius recompôs-se, vestindo a máscara de preocupação paternal que usava para lidar com Luther. Ele aproximou-se da mesa com passos medidos. Randal olhou para ele, e a expressão do Rei era de leve irritação. “Valerius, você não tinha documentos urgentes?” Randal perguntou. “Sim, Majestade. Mas a minha mente não me permite descansar quando a sua saúde está em jogo,” Valerius respondeu, e ele estava a olhar diretamente para Luther, ignorando Randal por um momento. “Príncipe Luther, permita-me uma palavra. O seu irmão parece estar com um humor excelente. Ele dormiu bem, como disse?” Luther, ainda radiante com a atenção do irmão, respondeu prontamente. “Ele dormiu nove horas, Lorde Valerius! Nove horas! Matt disse que a mente de Randal precisava de se render. É o Conforto Inutilitário, disse Matt!” Valerius piscou. O termo tinha vindo de novo, diretamente de Matt, e agora estava a ser repetido pelo Príncipe, sem saber o seu significado arcano. A dependência estava a começar. “Conforto Inutilitário,” Valerius repetiu, saboreando as palavras. “Interessante. Matt tem uma influência poderosa sobre o Rei. Eu estava preocupado com a sua segurança, Majestade. A sua insônia era uma característica, não uma falha. Mudá-la de repente me deixa inquieto.” “Não há motivo para preocupação, Valerius,” Randal interveio, a sua voz um pouco mais dura. “Eu estou bem, e estou mais lúcido do que estive em anos.” Valerius assentiu, mas virou-se novamente para Luther. Ele precisava da informação política. “Luther, você tem estado muito próximo de Matt. O filósofo tem partilhado as suas ‘reflexões’ com você? O que ele está a aconselhar o seu irmão sobre os assuntos do Reino?” Valerius perguntou, e ele estava a usar um tom de cumplicidade, como se estivesse a procurar a opinião de Luther. Luther hesitou por um segundo, olhando para Randal. Randal, no entanto, estava a beber o seu chá, ignorando a conversa. “Matt não fala muito de política, Lorde Valerius. Ele fala sobre honestidade e sobre a dor. Mas ele disse que Randal tem que parar de se esconder atrás dos números,” Luther começou, e a sua voz era baixa, confiante. Valerius inclinou-se. “Esconder-se? O que Matt quis dizer com isso?” “Sobre o imposto,” Luther revelou, e ele estava a falar como se fosse um grande segredo. “Matt disse que Randal estava com medo de fazer a coisa certa. Ele disse que o dinheiro para a fronteira deve vir da nobreza, não do pão dos pobres. Ele estava a planear discutir isso com Randal assim que o Rei acordasse. Matt disse que é o preço da inutilidade.” A boca de Valerius secou. Ali estava. A prova. Matt estava a usar a sua influência mágica, o Eixo, para impor uma política radical que enfraqueceria a nobreza e, mais importante, o próprio Valerius. O imposto sobre a nobreza era uma afronta direta à sua autoridade e à estrutura social que ele defendia. “Taxar a nobreza,” Valerius murmurou, e a sua voz estava carregada de desprezo. “Sim! E Randal concordou em considerar! Matt faz Randal sorrir, Lorde Valerius,” Luther disse, e ele estava a apontar para o rosto de Randal, que estava, de facto, com um sorriso fraco. Valerius endireitou-se, a sua postura de volta à sua rigidez habitual. A ameaça era real e imediata. Matt não estava apenas a manipular o Rei; ele estava a fazê-lo sorrir enquanto minava as fundações do reino. “Eu vejo, Príncipe Luther. Obrigado por esta informação,” Valerius disse, e a sua voz estava tensa. Ele se virou para Randal. “Majestade, eu tenho que me retirar. Os documentos urgentes agora exigem a minha atenção total.” Valerius não esperou pela resposta de Randal. Ele saiu do Salão de Jantar, o pergaminho debaixo do braço, e a mente a fervilhar de planos. Ele tinha a prova da possessão mágica e a prova da subversão política. Ele percebeu que o ataque tinha que ser em duas frentes. Ele usaria o imposto sobre a nobreza para inflamar a corte, e ele usaria o pergaminho, discretamente, para plantar a semente da suspeita de possessão entre os membros mais influentes do Conselho. Matt, o filósofo andarilho, tinha se tornado uma ameaça existencial ao reino e à sua ordem. Valerius não podia permitir que o Eixo controlasse o Rei. Ele caminhou em direção ao seu gabinete, e a sua mente já estava a estruturar as frases que usaria no seu ataque à reputação de Matt. Ele iria expor o filósofo como um charlatão que usava a magia negra do conforto para obter o controle. Ele tinha perdido a batalha da manhã, mas ele estava prestes a iniciar uma guerra que Matt, com toda a sua sabedoria, não esperava. Ele tinha o segredo dos Quatro Olhos e a intenção política de Matt. Ele estava pronto para a batalha.

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