Capítulo 9: O Preço da Ilusão
“Então, vamos começar com a primeira fase,” Amora disse, apontando para o grimório. “Mello, você precisa recitar o encantamento de Início de Ilusão. Snow, você precisa começar a misturar as ervas de proteção para a pele de Mello. A dor está prestes a começar.”
Mello assentiu rigidamente. O medo era um nó apertado em seu estômago, mas a urgência política e a determinação recém-descoberta o forçaram a ignorar a sensação. Ele caminhou para o centro do mapa astral, onde o giz mágico traçava constelações e símbolos antigos. O ar na sala, já denso com a fumaça das ervas medicinais, parecia vibrar com o potencial mágico.
Snow, por sua vez, moveu-se com uma eficiência clínica para a mesa de alquimia. Ele pegou um pilão e começou a triturar as folhas e raízes secas que Amora havia deixado, misturando-as com uma pomada base de sebo. Ele não hesitou, nem demonstrou repulsa pelo trabalho manual. Seu foco estava unicamente na tarefa.
Amora acendeu uma série de velas mais escuras que estavam posicionadas ao redor do mapa astral. “Lembre-se, Mello, a Ilusão é uma casca mágica. Sua concentração precisa ser inquebrável. Não é apenas a dor; é a sua mente que está forçando a matéria mágica a tomar uma forma que não é natural para você.”
Mello respirou fundo, fechando os olhos por um momento para se centrar. Ele sentiu a presença de Snow atrás dele, o som rítmico do pilão sendo usado, e a presença atenta de Amora. Ele abriu o grimório na página marcada e começou a recitar.
A linguagem era gutural e antiga, exigindo que ele projetasse sua voz a partir de um centro de energia que ele mal sabia que possuía. As palavras não eram apenas sons; eram comandos diretos à sua própria essência vital.
*“Aeterna forma, non mea natura, sed mea voluntas…”*
Quando o primeiro verso foi concluído, as linhas de giz no chão reagiram. Um brilho fraco e azulado emanou do mapa, envolvendo Mello. O calor inicial era suportável, como um banho quente, mas rapidamente se intensificou.
A dor veio como um choque elétrico.
Não era uma dor externa, mas uma profunda e visceral. Parecia que seus órgãos internos estavam sendo espremidos e rearranjados por mãos invisíveis. Mello arqueou as costas, o som do encantamento engasgando em sua garganta.
“Continue, Mello! Não quebre a Ilusão!” Amora gritou, sua voz tensa, mas controlada.
Mello mordeu o lábio, forçando os pulmões a funcionarem. Ele se lembrou do que Amora havia dito: a magia estava remodelando o fluxo de sua energia. A dor era a manifestação física dessa mudança drástica.
*“Vitae essentia, materiam creandi, mihi subservit…”*
Com o segundo verso, a intensidade dobrou. Mello sentiu um peso esmagador na região abdominal, como se uma pedra estivesse sendo colocada ali. Suor frio começou a escorrer de sua testa. Ele podia sentir a energia mágica se concentrando, puxando e tecendo a casca temporária que abrigaria a vida.
Snow parou de moer as ervas. A pomada estava pronta, com uma cor verde-escura e um cheiro forte de cânfora e terra. Ele se aproximou de Mello, que agora estava de joelhos, lutando para manter a postura.
“Amora, ele está lutando,” Snow disse, sua voz calma, mas com uma urgência implícita.
“É a ‘remodelagem mágica’,” Amora explicou, monitorando o brilho azulado. “É excruciante. Mello, você precisa se concentrar! Pense na forma que você está criando! A Ilusão precisa ser estável!”
Mello tentou visualizar a casca mágica, um berço de energia em seu interior. A dor era tão avassaladora que fragmentava seus pensamentos. Era como se sua própria alma estivesse sendo dividida para acomodar algo novo.
Ele conseguiu recitar o terceiro verso, e o brilho azul se estabilizou, mas a dor permaneceu em um platô agonizante.
“Snow, agora!” Amora ordenou. “As pomadas!”
Snow se ajoelhou ao lado de Mello. Mello estava tremendo violentamente, o corpo tenso, mas seus olhos estavam fixos no grimório, a determinação em sua mandíbula sendo a única coisa que o impedia de gritar.
“Eu vou aplicar a pomada de proteção,” Snow sussurrou, sua voz suave, mas firme, contrastando com a agonia de Mello. “Isso vai impedir que a magia superficial queime sua pele, mas não aliviará a dor interna.”
Mello apenas assentiu, incapaz de falar.
Snow começou a aplicar a pomada. Ele começou pelas mãos e pulsos de Mello, onde a energia mágica estava fluindo mais intensamente, criando um calor que se irradiava perigosamente. Snow trabalhou com uma calma metódica, cobrindo cada centímetro da pele exposta. Ele ergueu a manga do manto de Mello e aplicou a pasta nos antebraços, sentindo o tremor da carne sob seus dedos.
A frieza de Snow era um baluarte contra o caos. Ele estava focado apenas na tarefa, seus olhos azuis observando cada reação de Mello.
Amora, de pé a uma distância segura, observava Snow.
“Seja cuidadoso, Snow. A dor pode fazê-lo se mover de repente,” Amora avisou, sua voz não continha repreensão, mas um teste velado.
“Eu sei,” Snow respondeu, sem tirar os olhos do corpo de Mello. Ele se moveu para o pescoço e a nuca de Mello, onde a tensão estava mais visível. Seu toque era profissional, quase impessoal, mas a proximidade física era íntima e inevitável.
Enquanto Snow aplicava a pomada, Mello se agarrou àquela presença. A dor era um muro sólido, e a voz de Snow era a única corda salva-vidas. Ele tentou se concentrar, mas o tormento físico era um ruído ensurdecedor em sua mente.
Nesse momento de intensa vulnerabilidade, a mente de Mello, buscando alívio, projetou memórias. Vislumbres rápidos, mas vívidos, de Snow.
Ele viu Snow rindo, sentado com ele à beira do lago, jogando pedras e reclamando das aulas de etiqueta. Viu Snow, ainda adolescente, com as bochechas coradas, defendendo Mello de um comentário maldoso de um nobre mais velho. Sentiu o peso da mão de Snow em seu ombro durante o funeral de seus pais, um apoio silencioso, mas inabalável.
Essas memórias eram âncoras. Snow, o leal, o amigo de infância, o único que nunca o julgou. A dor era a traição de seu corpo, mas Snow, ali, era a promessa de lealdade.
*Ele não me trairia. Ele está fazendo isso por mim.* Mello pensou, usando a memória da confiança para alimentar sua concentração.
“Você precisa beber, Mello,” Snow disse, interrompendo o fluxo das lembranças. Ele pegou uma taça contendo uma infusão amarga que Amora havia preparado.
Mello abriu os olhos, que estavam vermelhos e lacrimejantes pela tensão. Ele viu o rosto de Snow, que estava a poucos centímetros do seu. Os olhos azuis estavam sérios, sem o menor traço de agitação.
“Não consigo parar de recitar,” Mello sussurrou, a voz rouca.
“Apenas um gole. Se você desidratar, a magia falhará por exaustão,” Snow insistiu. Ele aproximou a taça dos lábios de Mello.
Mello teve que inclinar a cabeça para trás, e Snow segurou a taça para ele, derramando cuidadosamente o líquido. Era grosso e de sabor forte, mas Mello sentiu um breve impulso de energia.
Enquanto Mello bebia, Amora observava a cena. Ela notou a precisão do cuidado de Snow, a forma como ele antecipava as necessidades de Mello, mas também a ausência total de emoção em seus olhos.
“Você está muito calmo, Snow,” Amora comentou, sua voz baixa. Ela queria que ele sentisse a pressão, que revelasse uma rachadura. “O Príncipe está em agonia. O que o mantém tão focado?”
Snow se afastou de Mello, que voltou a recitar com uma nova urgência. Ele olhou para Amora, e seu olhar era um desafio silencioso.
“O Príncipe confiou a mim a sua proteção, Conselheira,” Snow respondeu, pegando um pano para limpar o excesso de pomada de suas mãos. “Minha agitação não o ajudaria a estabilizar a Ilusão. Eu preciso ser a âncora dele, como você mesma disse. Se eu vacilar, o Príncipe morre.”
Sua explicação era lógica, irrefutável. Mas a frieza por trás dela era o que incomodava Amora. Era a mesma frieza que ela havia testemunhado no Salão Principal, logo após o assassinato de Draven.
“É uma lealdade impressionante,” Amora disse, deixando a frase pairar no ar como uma suspeita. “Uma lealdade que não se abala nem mesmo diante da morte de um tenente superior, ou da visão de seu amigo sendo torturado pela magia.”
Snow parou por um momento, mas não vacilou. Ele se moveu para as pernas de Mello, aplicando a pomada nos músculos tensos.
“A morte do Tenente Draven foi um ato de desespero do Soldado Nyon, Conselheira,” Snow disse, sem levantar a voz. “Eu estava chocado, mas não sou um covarde. Eu estava me preparando para confrontar Draven sobre sua regência, mas Nyon agiu antes. Eu não o matei, Amora. Minha prioridade era, e sempre será, Mello. Minha única função agora é garantir que ele sobreviva à dor e que o ritual seja concluído, para que o reino não caia nas mãos de ninguém.”
Mello, em meio à dor excruciante, ouviu a troca. As palavras de Amora ecoaram a dúvida que ele estava tentando enterrar. A dor, agora, parecia amplificar a desconfiança. Ele estava se abrindo para Snow de uma forma irreversível, entregando seu corpo e o futuro do reino. E se Snow estivesse mentindo? E se a lealdade fosse apenas uma máscara para um plano ainda mais sombrio do que o de Draven?
No ápice da dor, Mello não aguentou mais a incerteza. A agonia física lhe deu uma coragem desesperada.
Ele parou de recitar o encantamento no meio de uma frase. O brilho azul vacilou perigosamente.
“Mello, continue! Você vai colapsar!” Amora gritou.
Mello se virou para Snow, sua respiração pesada. Seus olhos, cheios de dor e desespero, encontraram os de Snow.
“A verdade,” Mello sibilou, a dor roubando sua força. “Draven. Nyon. Por que a porta estava trancada, Snow? Eu preciso saber. Eu não consigo continuar com essa dúvida. Eu preciso da verdade.”
O brilho azul estava enfraquecendo, e Amora colocou as mãos sobre o grimório, pronta para intervir. O risco de colapso mágico era iminente.
Snow, que estava com a mão na panturrilha de Mello, parou seu movimento. Ele não mostrou irritação pela interrupção, apenas uma paciência estudada. Ele se aproximou de Mello, ficando à altura dos olhos do Príncipe.
“Você sabe a verdade, Mello,” Snow disse, sua voz mantendo a calma inabalável. “Eu te disse. Eu te tranquei porque eu precisava ir ao Salão Principal. Draven estava prestes a tomar o reino. Eu não podia te expor ao risco. Você estava abalado, e eu precisava de você seguro enquanto eu avaliava a situação. Eu estava indo alertar o conselho.”
“E a morte de Draven?” Mello insistiu, sentindo o corpo esfriar com a perda de concentração mágica.
“Eu vi Nyon atirar o dardo. Nyon agiu por desespero, Mello,” Snow repetiu, a versão ensaiada saindo com a convicção de uma testemunha ocular perfeita. Ele não hesitou, nem mudou o foco. “A morte de Draven é um vácuo de poder que Amora acabou de preencher com o seu isolamento. Foi conveniente, sim. Mas eu não o matei. Eu estava lá porque precisava te proteger do Tenente. Eu estou aqui agora, me voluntariando para a concepção mágica, para te proteger do conselho. O que mais você precisa, Mello? Eu estou aqui, sofrendo por você, para você.”
Snow apertou a mão de Mello, não de forma reconfortante, mas como um ponto de pressão, um lembrete físico da realidade e da urgência.
“Você não tem tempo para especular sobre a política do Salão Principal. Se a Ilusão colapsar agora, você morre, e o reino não terá herdeiro. Draven venceu, mesmo morto. Sua suspeita é a única coisa que está nos atrasando,” Snow disse, usando a lógica fria como uma arma.
A racionalidade da ameaça atingiu Mello com mais força do que a dor mágica. Snow estava certo. Ele não podia se dar ao luxo de hesitar. A prioridade era a sobrevivão e o ritual.
Mello fechou os olhos, soltando um gemido de frustração e dor. Ele não acreditava em Snow completamente, mas precisava agir como se acreditasse. A necessidade de sobreviver e proteger o reino era maior do que a necessidade de justiça ou clareza.
“Continue,” Mello disse, a voz quase inaudível.
Snow assentiu, e Mello voltou a recitar o encantamento. O brilho azul voltou, ainda mais intenso, e a dor voltou a se concentrar no abdômen. Mello apertou o maxilar, forçando as palavras.
*“Utero magico, vita mihi nascitur, pro regno…”*
Snow, vendo que Mello estava de volta ao foco, retomou a aplicação da pomada, garantindo que a pele de Mello estivesse protegida. Ele se moveu para as costas de Mello, deslizando a pomada pelos ombros e ao longo da coluna, onde a tensão mágica estava se concentrando para criar o ponto de suporte da ‘Ilusão’.
Amora observava o ritual com uma tensão crescente. Ela podia sentir a energia instável. Mello estava forçando a magia além de seus limites naturais, e a dor era o preço dessa violência.
As horas se arrastaram. O sol se pôs, e as velas de Amora eram a única fonte de luz, lançando sombras dançantes na sala.
Mello continuou o encantamento, a voz rouca e baixa, como se estivesse recitando uma oração para a morte. O corpo dele estava coberto de suor e da pomada escura, e ele tremia incessantemente.
Snow permaneceu ao seu lado, como um fantasma vigilante. Ele monitorava a respiração de Mello, oferecia a infusão a cada hora e aplicava a pomada com movimentos precisos e rítmicos. Ele não dormiu, nem demonstrou cansaço, sua expressão congelada em uma máscara de determinação.
A dor de Mello atingiu o pico perto do amanhecer. Ele gritou, um som abafado e primal, quando sentiu a Ilusão se estabilizar. Era o momento em que a casca mágica era totalmente formada, um útero temporário sustentado por sua própria essência vital.
O brilho azul atingiu um pico intenso, e então, de repente, suavizou-se. A dor não desapareceu totalmente – agora era uma dor crônica, um peso constante – mas a agonia excruciante havia diminuído.
Mello parou de recitar, seus olhos se reviraram, e ele caiu para o lado, desmaiando no mapa astral.
Snow o segurou antes que ele atingisse o chão de mármore. O corpo de Mello estava mole, exausto.
Amora correu para perto. Ela inspecionou o mapa astral e o brilho fraco que ainda emanava. Ela tocou a testa de Mello.
“O corpo dele está quente, mas a magia está estável,” Amora disse, sua voz cheia de alívio e cansaço. “Ele sobreviveu ao primeiro dia. A Ilusão foi criada.”
Snow gentilmente ajustou Mello no chão, usando um manto dobrado como travesseiro. Mello estava respirando superficialmente, totalmente esgotado.
“Ele precisa descansar. Quanto tempo até a próxima fase?” Snow perguntou, olhando para Amora.
“A Ilusão precisa se estabilizar completamente. Três dias de dor, eu disse. Os próximos dois dias serão de manutenção da casca mágica,” Amora explicou. “Ele precisa recitar os encantamentos de estabilidade a cada poucas horas, e você precisará garantir que ele não durma por muito tempo, ou a casca pode falhar. É um sono forçado pela exaustão, não pelo relaxamento.”
Amora se levantou, limpando o suor frio de sua própria testa.
“Eu preciso voltar ao conselho. O vácuo de poder é perigoso. Eu preciso garantir que o decreto de reclusão não seja revogado,” Amora disse, olhando para Snow. “Com Draven morto e Mello isolado, a política será feita na minha ausência, e eu não confio em Elara para manter a ordem.”
Ela olhou para Snow com uma expressão severa.
“Você está no controle aqui. Se ele acordar em pânico ou se a dor voltar a aumentar, você precisa me chamar imediatamente, mesmo que eu esteja em uma reunião com o conselho.”
Snow assentiu, sua expressão ainda fria. Ele pegou um pano úmido e começou a limpar o rosto de Mello.
“Eu vou protegê-lo, Amora. A Ilusão não vai colapsar,” Snow prometeu.
Amora hesitou na porta. Ela ainda sentia a estranha dicotomia daquele homem: leal a ponto de se submeter a um ritual forçado, mas frio o suficiente para testemunhar um assassinato e a agonia de seu amigo sem piscar.
“Eu estarei de volta ao meio-dia para verificar a Ilusão e preparar os ingredientes para a segunda fase. Não abra a porta para mais ninguém,” Amora instruiu.
“Entendido,” Snow respondeu, sem desviar o olhar de Mello.
Amora abriu a porta, lançou um último olhar para o Príncipe desmaiado e o amigo vigilante, e saiu apressadamente, trancando a porta atrás de si.
O som do ferrolho ecoou na sala silenciosa.
Snow estava sozinho com Mello.
Ele parou de limpar o rosto de Mello. A magia no centro do mapa astral brilhava fracamente, um lembrete silencioso do trabalho concluído.
Snow olhou para o rosto adormecido do Príncipe. A tensão e a dor haviam suavizado os traços de Mello, deixando-o com a aparência de um menino cansado.
Snow levou a mão, coberta com a pomada de ervas, até o rosto de Mello. Ele tocou a bochecha suavemente, o polegar roçando a pele.
A frieza profissional desapareceu. Em seu lugar, havia uma expressão complexa e enigmática. Não era amor puro, nem remorso. Era uma satisfação silenciosa.
“Funcionou,” Snow sussurrou para o ar, a voz carregada de triunfo. “A primeira fase foi concluída.”
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