Chapter 3: As Regras da Mansão e a Mãe Calculista Kevin acordou lentamente, a sensação de segurança era a primeira coisa que ele percebeu. Ele estava quente e aninhado sob um edredom que cheirava a tecido novo e limpeza. O quarto estava escuro, a luz do sol da manhã era filtrada pelas cortinas pesadas. Ele abriu os olhos, olhando para o teto, e demorou alguns segundos para se lembrar de onde estava. Ele estava na casa de Mihael, a mansão gigantesca que ele havia invadido na noite anterior. O dia anterior parecia um sonho agitado, mas o peso suave do edredom e o silêncio do quarto confirmavam a realidade. Ele virou a cabeça para o lado. Mihael estava deitado ao seu lado, de costas para ele, parecendo uma estátua. Mihael era magro e parecia pequeno na cama enorme, mas a postura dele era rígida, mesmo dormindo. Kevin observou o garoto. O contraste físico entre eles era evidente até mesmo na penumbra do quarto. Kevin era loiro e pálido, e Mihael era a antítese completa. Kevin pensou na conversa da noite anterior sobre ser como um copo de leite derramado. Ele sorriu levemente, lembrando-se da franqueza de Mihael. Kevin estava com fome. Seu estômago deu um pequeno ronco, mas ele se conteve, não querendo acordar Mihael. Ele tentou se levantar da cama sem fazer barulho, mas o colchão fez um pequeno som. Ele parou, observando Mihael. O garoto não se moveu. Kevin escorregou para fora da cama, vestindo o moletom grande que Mihael havia emprestado. O chão de madeira estava frio sob seus pés descalços. Ele andou até a janela e afastou um pouco a cortina pesada. A luz da manhã inundou o quarto, revelando o jardim bem cuidado lá embaixo. O gramado parecia perfeito, sem uma única folha caída. Era um lugar de riqueza inegável, e Kevin sentia-se um intruso. Enquanto olhava pela janela, ele ouviu um movimento atrás dele. Mihael estava sentado na cama, de olhos abertos. Não havia transição entre o sono e a vigília; Mihael simplesmente estava acordado. Ele olhou para Kevin, sem expressão. “Você está acordado há muito tempo?” Mihael perguntou, a voz áspera de sono, mas já prática. “Não, acabei de acordar,” Kevin respondeu. “Desculpe pelo barulho.” Mihael se levantou da cama. Ele usava a mesma calça de moletom da noite anterior, e Kevin percebeu que Mihael não se importava muito com a aparência. Mihael caminhou até a escrivaninha, pegando um copo de água que estava lá. “Tudo bem,” Mihael disse, bebendo a água rapidamente. “Mas você precisa ser mais silencioso. Meu pai acorda cedo, e ele tem ouvidos por toda a casa.” Kevin se encolheu. A menção do pai de Mihael, o homem autoritário da noite anterior, trouxe de volta a ansiedade. “Ele já acordou?” Kevin perguntou, baixando a voz. “Provavelmente está no escritório,” Mihael disse, olhando para o relógio na parede. “Ninguém deve estar na cozinha ou nos corredores de serviço agora, exceto talvez a faxineira, mas ela não se importa. É por isso que temos que nos mover agora.” Mihael vestiu uma camisa de manga comprida cinza. Ele se virou para Kevin, a seriedade em seus olhos pretos era inconfundível. “Escute, Kevin. Você não pode ficar vagando pela casa,” Mihael disse, cruzando os braços. “Meu pai é um homem de negócios. Ele não tem paciência para distrações, e a sua presença aqui é uma distração gigante. Se ele te pegar, ele vai te mandar embora, e você vai parar na rua ou em um abrigo.” Kevin assentiu rapidamente. “Eu entendo. Eu vou ficar aqui.” “Não é tão simples quanto ficar aqui,” Mihael corrigiu. “Você precisa de comida, e não podemos pedir serviço de quarto. A comida que você vai comer tem que parecer que é para mim. E você tem que saber como se mover por esta casa.” Mihael começou a andar pelo quarto, gesticulando para Kevin segui-lo. “Regra número um: O silêncio é essencial. Esta casa é grande, mas o som viaja,” Mihael explicou, falando em um tom de voz que Kevin mal podia ouvir. “Regra número dois: Não mexa em nada. Tudo nesta casa é caro, e meu pai odeia desorganização. Regra número três: Se você vir meu pai, congele e espere que ele passe. Não faça contato visual. Não fale. Se ele te perguntar algo, eu respondo.” Mihael parou em frente à porta do quarto, a mão no trinco. Ele se virou para Kevin. “Você entendeu? Você é um fantasma. Você não está aqui.” Kevin processou a informação. A casa de Mihael não era um refúgio, mas sim um campo minado. “Eu entendi,” Kevin sussurrou. “Silêncio, não tocar em nada, e fantasma.” “Bom,” Mihael disse. “Agora, vamos. Você precisa comer alguma coisa antes que a casa comece a se encher de gente.” Mihael abriu a porta do quarto com cautela, espiando para o corredor. O corredor estava vazio, iluminado pela luz fraca das luminárias de parede. Mihael saiu do quarto e fez um sinal para Kevin segui-lo. Eles começaram a descer a escada de serviço, que era a mesma que haviam subido na noite anterior. Mihael se movia com uma furtividade impressionante, colocando o peso na ponta dos pés. Kevin tentou imitá-lo, mas seu corpo desajeitado e o moletom folgado dificultavam o movimento. Ele pisou em um degrau que rangeu levemente, e Mihael parou imediatamente, olhando para ele com um olhar de advertência. “Devagar,” Mihael sibilou. “Seja mais leve.” Kevin tentou se concentrar no movimento, pensando em si mesmo como um gato, mas ele era mais como um elefante desajeitado. Eles continuaram a descida, e a cada passo Kevin se sentia mais consciente de sua presença. Chegaram ao andar principal e entraram no corredor de serviço. Este corredor era funcional, com piso de ladrilhos e portas que levavam a despensas e armários de limpeza. O cheiro de produtos de limpeza ainda estava fraco no ar, mas era mais suave do que o cheiro do porão de serviço. Mihael o guiou pelo corredor, e Kevin notou que Mihael parecia saber exatamente onde cada tábua rangia, desviando delas com precisão. Eles se aproximaram da cozinha. “A cozinha é segura agora. A cozinheira só chega às nove,” Mihael sussurrou. “Vamos pegar algo rápido e voltamos para o quarto. Você come lá.” Mihael abriu a porta da cozinha. A cozinha era ainda mais impressionante à luz da manhã. Balcões de mármore brilhantes, panelas penduradas em um rack de aço inoxidável, e o silêncio amplificavam o tamanho do cômodo. Mihael caminhou diretamente para a geladeira, abrindo-a com a mesma indiferença com que alguém abriria uma geladeira comum. Kevin parou na entrada, olhando em volta. “O que você quer?” Mihael perguntou, olhando para Kevin. “Pão, cereal, tem frutas.” “Cereal está bom,” Kevin respondeu. Ele estava nervoso demais para ter um apetite real, mas a fome o estava incomodando. Mihael pegou uma caixa de cereal e dois bowls. Ele pegou leite e os colocou no balcão. “Eu vou pegar os talheres,” Mihael disse, indo em direção a uma gaveta. Kevin observou Mihael. A praticidade do garoto era surpreendente. Ele não parecia nem um pouco preocupado com a possibilidade de ser pego. Para Mihael, a situação parecia ser apenas mais um problema logístico a ser resolvido. Mihael voltou com dois conjuntos de talheres e os colocou ao lado dos bowls. “Tudo pronto,” Mihael disse. Ele estava prestes a servir o cereal quando um som o fez parar. Não eram os passos pesados do pai, mas um som diferente, mais suave, mas igualmente autoritário. O som de saltos elegantes no piso de mármore. O som vinha do corredor principal, o que significava que a pessoa estava prestes a entrar na cozinha por outra porta, a principal, não a de serviço. Mihael congelou, a colher de cereal suspensa no ar. “Merda,” Mihael sibilou, mas sem pânico. Era apenas uma constatação. “O que foi?” Kevin perguntou, a voz quase sumindo. “Minha mãe,” Mihael respondeu, e ele rapidamente empurrou os bowls de cereal para trás de uma pilha de livros de receita, tentando esconder a evidência. “Ela não deveria estar acordada agora. Ela tem o sono leve.” Não havia tempo para fugir. A porta principal da cozinha se abriu, e uma mulher entrou. A mulher era impressionante. Ela era alta, vestindo um robe de seda escuro que parecia ter custado uma fortuna. O cabelo preto estava preso em um coque elegante, e ela usava maquiagem leve, mas que acentuava a seriedade de seu rosto. Ela era negra, como Mihael, mas a diferença de idade tornava a cor da pele dela mais rica, mais profunda. Ela irradiava uma aura de controle e poder que fazia Kevin se sentir pequeno. A mulher parou na porta, observando Mihael, que estava de pé ao lado do balcão, fingindo estar apenas pegando um copo de água. Ela não parecia surpresa. Ela parecia que estava esperando por algo. “Mihael,” a voz dela era suave, mas carregada de uma autoridade que superava até mesmo a do pai de Mihael na noite anterior. “O que você está fazendo na cozinha a esta hora?” Mihael se virou para a mãe. Sua calma era notável. “Bom dia, Mãe,” Mihael disse. “Eu tive um pouco de fome. Eu estava prestes a pegar uma fruta e voltar para o quarto.” A mãe de Mihael, no entanto, não estava olhando para Mihael. Ela estava olhando diretamente para Kevin. Kevin estava parado perto do balcão, atrás de Mihael, e ele percebeu que a tentativa de Mihael de escondê-lo tinha sido inútil. O moletom grande e o cabelo loiro de Kevin eram impossíveis de ignorar em um ambiente tão escuro e controlado. A mãe de Mihael moveu a cabeça, fixando o olhar em Kevin. Kevin sentiu um arrepio. A avaliação dela era rápida, fria e completa. Ela parecia estar catalogando todos os detalhes sobre ele. “E quem é este, Mihael?” ela perguntou. O tom dela não era de raiva ou pânico, mas de uma curiosidade controlada. Era pior do que se ela estivesse gritando. Mihael suspirou, um gesto sutil que mostrava que ele sabia que a situação tinha saído do controle. Ele se virou para Kevin e depois para a mãe. “Mãe, este é Kevin,” Mihael disse, sem rodeios. “Kevin, esta é minha mãe, Elara.” Kevin, paralisado, conseguiu apenas murmurar um pequeno “Olá”. Elara, a mãe de Mihael, caminhou lentamente para a cozinha, parando a alguns metros de distância. O robe de seda movia-se com a precisão de um predador. Ela não sorriu. “Kevin. Um nome… comum,” Elara disse. Ela olhou para Mihael. “Explique-se. E que seja rápido. Eu não tenho o dia todo.” Mihael começou a explicar, e ele foi direto ao ponto, sem tentar florear a situação. “Eu o encontrei na praça ontem à noite. Ele se perdeu da família. Estava prestes a ser roubado. Eu o trouxe para cá porque ele não tinha onde ficar, e não seria seguro deixá-lo na rua, especialmente perto do Natal.” Elara ouviu, sem interromper. Ela mantinha os olhos em Kevin. Kevin tentou parecer o mais inofensivo possível, mas ele sabia que sua aparência pálida e desgrenhada, mesmo após o banho, não ajudava. “Perdido da família,” Elara repetiu. “Você o trouxe para a minha casa, Mihael. Sem a minha permissão, ou a do seu pai. Você entende a gravidade disso?” “Sim, Mãe,” Mihael respondeu. “Mas eu não podia deixá-lo lá.” Elara moveu-se, dando a volta no balcão, e parou diretamente em frente a Kevin. Kevin teve que levantar o olhar para encará-la. Os olhos dela eram pretos e penetrantes, e pareciam ler a alma de Kevin. “Você é um garoto loiro, Kevin,” Elara disse. “Você claramente vem de uma família de posses. Por que sua família te deixaria para trás?” Kevin engoliu em seco. A pergunta era direta, e ele não sabia como responder sem parecer patético. “Minha família é grande,” Kevin começou. “Nós estávamos em um ônibus de viagem. Eu me distraí, e eles… eles não me notaram. Só percebemos que eu tinha ficado para trás muito tempo depois.” Elara inclinou a cabeça, processando a informação. Não havia julgamento explícito, apenas análise. “Uma família que não nota a ausência de um de seus filhos,” Elara comentou. “Interessante.” Ela olhou para o moletom que Kevin estava usando, e depois para os pés descalços dele. “Você estava dormindo no quarto de Mihael, suponho,” ela disse. “Sim, Mãe,” Mihael interveio. “Ele precisava de um lugar seguro.” Elara não tirou os olhos de Kevin. A avaliação parecia ter atingido o auge. Kevin podia sentir a pressão da presença dela. “Você sabe onde você está, Kevin?” Elara perguntou. “Na sua casa, eu acho,” Kevin respondeu, hesitante. “Esta não é apenas uma casa, Kevin. Esta é uma casa de negócios,” Elara disse, a voz baixa. “Meu marido é um homem que lida com assuntos… sensíveis. Pessoas que não deveriam estar aqui não podem ficar.” Kevin sentiu a esperança diminuir. Ele seria expulso. Mihael deu um passo à frente, colocando-se ligeiramente na frente de Kevin, como uma barreira. “Mãe, ele não é uma ameaça. Ele é só uma criança perdida,” Mihael argumentou. “Ele pode ficar no meu quarto. Ele não vai atrapalhar.” Elara levantou a mão, um gesto que silenciou Mihael imediatamente. “Eu decido quem atrapalha e quem não atrapalha, Mihael,” Elara disse. Ela olhou para Kevin mais uma vez, e desta vez, havia uma mudança sutil em sua expressão. Não era bondade, mas sim uma decisão tomada. “Ele pode ficar,” Elara disse. Kevin piscou. Ele estava esperando ser repreendido, ou que a polícia fosse chamada. “Ele pode ficar, mas sob condições estritas,” Elara continuou. “Primeiro, você não pode sair do quarto de Mihael. Em momento algum. Você não deve ser visto por ninguém, exceto nós três. Segundo, você não deve fazer barulho. Terceiro, se meu marido perguntar, você é um primo distante que está passando o Natal. Mihael vai ter que te instruir sobre a história.” Kevin assentiu vigorosamente. Ele aceitaria qualquer condição. Mihael parecia surpreso, mas aliviado. “Obrigado, Mãe.” “Não me agradeça ainda,” Elara disse. Ela deu um passo para trás, voltando para o lado do balcão. “Mihael, você fez uma decisão impulsiva, o que é inaceitável. Você me expôs a uma variável desconhecida, e isso é um erro grave no nosso contexto. No entanto, o seu julgamento de que ele é inofensivo e precisa de abrigo parece ser correto.” Ela olhou para Kevin. “Você tem sorte que Mihael tem um bom olho para as pessoas. Caso contrário, você já estaria na rua.” Elara pegou um copo de água e bebeu lentamente, observando Mihael. “Agora, a parte mais importante,” Elara disse. “Seu pai precisa saber imediatamente.” O alívio de Mihael desapareceu. “Mãe, ele vai ficar bravo. Eu posso explicar para ele mais tarde.” “Não,” Elara disse, com uma firmeza que não permitia discussão. “Você cometeu o erro de trazê-lo para cá em segredo. Você não vai cometer o erro de esconder a situação dele. Seu pai odeia a desonestidade mais do que ele odeia variáveis.” Elara continuou, a voz ficando mais fria. “Você vai tomar o café da manhã, e depois você vai se apresentar ao escritório dele e relatar a situação. Você vai dizer exatamente o que aconteceu e por que você o trouxe. Não minta. Não omita.” Mihael parecia pesar as consequências. O pai autoritário da noite anterior voltava à mente de Kevin, e a ideia de Mihael ter que encarar o homem para explicar a situação era assustadora. “Eu vou,” Mihael disse, a voz séria. “Depois que ele tomar o café da manhã.” Elara olhou para Kevin novamente. “Kevin, você vai comer, e depois você vai voltar para o quarto de Mihael. Não saia de lá até que Mihael volte.” Kevin assentiu, tentando parecer o mais obediente possível. “Mihael,” Elara disse. “Sirva o cereal para Kevin. E encontre roupas melhores para ele. Ele não pode andar pela casa parecendo um sem-teto.” Elara se virou e caminhou em direção à porta da cozinha. Ela parou no umbral e olhou para Mihael. “Seja prático, Mihael. Seja direto. E não me decepcione.” Com isso, Elara saiu da cozinha, o som de seus saltos desaparecendo no corredor. O silêncio na cozinha era pesado. Kevin olhou para Mihael, que estava parado, olhando para a porta por onde a mãe tinha saído. “Sua mãe é… intensa,” Kevin sussurrou. Mihael balançou a cabeça. “Ela é a mais fácil. Você não quer irritar o meu pai.” Mihael se moveu rapidamente, pegando o cereal e o leite. Ele serviu o cereal nos bowls. “Coma rápido,” Mihael disse, empurrando um bowl para Kevin. “Eu tenho que fazer isso, e quanto mais cedo eu o fizer, mais cedo estaremos seguros.” Kevin sentou-se em um dos bancos altos perto do balcão e começou a comer o cereal. Estava doce e crocante, e ele percebeu o quanto estava faminto. Ele comeu rapidamente, prestando atenção em Mihael. Mihael também estava comendo, mas de forma mais contida, olhando para o relógio na parede. Ele parecia estar calculando os riscos. “Por que sua mãe não ficou brava?” Kevin perguntou, curioso. “Eu achei que ela ia gritar ou me expulsar.” Mihael deu de ombros. “Minha mãe não grita. Ela só… processa. Ela é prática. Ela viu a situação, avaliou que você não é uma ameaça, e decidiu que a melhor forma de lidar com isso é estabilizar a variável. Ela não gosta de desordem.” Kevin pensou sobre isso. A calma de Elara era realmente mais assustadora do que qualquer grito. “Ela disse que seu pai lida com assuntos sensíveis,” Kevin disse. “O que ele faz?” Mihael parou de comer e olhou para Kevin. “Meu pai tem muitos negócios,” Mihael disse, evasivo. “Importação e exportação. Investimentos. Muita coisa.” Mihael não parecia querer falar sobre o trabalho do pai, então Kevin não insistiu. Eles terminaram o cereal rapidamente. Mihael lavou os bowls e os colocou na máquina de lavar louça. O movimento era eficiente e rápido. “Vamos voltar para o quarto,” Mihael disse. “Eu vou pegar algumas roupas para você.” Eles voltaram para o quarto de Mihael, movendo-se com a mesma furtividade. Kevin notou que o medo de ser pego pelo pai era um motivador forte. No quarto, Mihael abriu o armário e começou a vasculhar as roupas. Ele tirou uma camiseta branca lisa e uma calça jeans escura, que pareciam ser um pouco maiores que o tamanho dele. “Vista isto,” Mihael disse, jogando as roupas para Kevin. “Pelo menos você não parece um mendigo agora.” Kevin vestiu as roupas. A camiseta era macia, e a calça jeans caía bem, embora um pouco longa. “Obrigado,” Kevin disse. Mihael não respondeu. Ele estava andando de um lado para o outro do quarto, parecendo nervoso, algo incomum para o garoto que parecia ter controle sobre tudo. “Eu tenho que ir agora,” Mihael disse, parando. “Eu não posso adiar isso. Meu pai odeia atrasos.” Mihael se aproximou de Kevin e o olhou nos olhos. A seriedade de Mihael era contagiante. “Lembre-se das regras. Fique aqui. Não saia. Se alguém bater na porta, não responda. Espere até que eu volte.” Kevin assentiu, a ansiedade voltando. Ele se sentia mal por Mihael ter que enfrentar o pai por causa dele. “Eu sinto muito por ter causado problemas,” Kevin disse. Mihael revirou os olhos. “Não sinta. Eu causei o problema. Eu que decidi te trazer. Agora, fique quieto.” Mihael caminhou até a porta. Ele parou e olhou para Kevin uma última vez. “Eu não vou demorar. Ele só vai querer uma explicação.” Mihael saiu do quarto, fechando a porta com cuidado. Kevin estava sozinho. O quarto de Mihael, que parecia um refúgio seguro na noite anterior, agora parecia uma prisão de luxo. Ele podia ouvir o silêncio da casa, um silêncio pesado e opressor. Ele caminhou até a cama e sentou-se na beirada. Ele olhou para a estante de livros de Mihael, tentando se distrair. Os livros eram todos em línguas estrangeiras ou sobre assuntos sérios: história, economia, estratégia. Não havia nada que parecesse pertencer a um garoto de dez anos. Kevin pensou na mãe de Mihael, Elara. Ela era elegante e imponente, e a calma dela ao descobrir um estranho em sua casa era perturbadora. Ela não tinha questionado a história de Kevin, apenas a tinha aceitado como um fato a ser gerenciado. A forma como ela falava sobre o pai de Mihael, o “homem de negócios”, sugeria que a casa era um centro de operações, não um lar comum. Ele olhou para a porta. Mihael estava lá fora, enfrentando o pai. Kevin não tinha ideia de quanto tempo Mihael levaria. Ele estava preso no quarto, esperando o resultado do encontro. A espera era agonizante. Ele podia ouvir os sons distantes da casa: talvez a faxineira no andar de baixo, talvez o som fraco de um telefone tocando em algum lugar. Kevin se levantou e começou a andar pelo quarto. Ele parou perto da janela, afastando a cortina apenas o suficiente para olhar para o jardim. O sol estava mais alto agora, e o jardim parecia ainda mais impecável. Ele voltou para a cama e sentou-se novamente, abraçando os joelhos. Ele estava seguro, sim, mas a sensação de deslocamento era intensa. Ele estava em um mundo completamente diferente, com regras que ele mal entendia. A família de Mihael era diferente. O pai era autoritário, a mãe era calculista, e Mihael era prático e destemido. Ele esperou, o tempo se arrastando. Cada minuto parecia uma hora. Ele imaginou a cena no escritório do pai: Mihael, mantendo a calma, explicando a situação, e o pai, avaliando a ameaça. Kevin pensou em sua própria família. Eles já teriam notado a ausência dele? Eles estariam procurando? A indiferença deles no ônibus de viagem o havia ferido, e a honestidade fria de Mihael na noite anterior havia apenas confirmado o medo dele. Seus pais provavelmente estavam frenéticos agora, mas a sensação de ser excluído ainda estava fresca. Kevin olhou para o livro de Mihael na mesa de cabeceira. Ele se perguntou o que Mihael estava lendo. Ele pegou o livro. A capa escura tinha letras em ouro, e o título era longo e complexo. Kevin reconheceu a língua: Latim. Mihael estava lendo um livro em Latim. Kevin, com oito anos, mal dominava o português. Isso só aumentava o mistério de Mihael. Ele colocou o livro de volta na mesa. Ele precisava de paciência. Kevin se deitou na cama, de costas, olhando para o teto. Ele tentou se acalmar, respirando fundo. Ele estava sob o teto da máfia, mas ele não sabia disso ainda. Ele só sabia que estava seguro, por enquanto. Ele fechou os olhos, tentando bloquear a ansiedade, mas a imagem do pai de Mihael, alto e imponente, invadia seus pensamentos. De repente, ele ouviu o som de passos no corredor. Não eram os passos pesados do pai, mas os passos mais leves e rápidos de Mihael. Kevin se sentou na cama. A porta se abriu, e Mihael entrou. Mihael parecia o mesmo: calmo, prático. Mas havia uma tensão sutil na postura dele que Kevin não tinha visto antes. Mihael fechou a porta e se encostou nela. “E então?” Kevin perguntou, a voz baixa. Mihael respirou fundo. “Ele sabe. Ele aceitou. Mas ele quer te conhecer.” Kevin se encolheu. “Agora?” “Não, mais tarde,” Mihael disse. “Eu o convenci a te dar um dia para descansar. Mas ele quer que você esteja pronto para falar com ele no jantar. Ele disse que quer ‘avaliar a variável’.” Mihael se afastou da porta e caminhou até a cama, sentando-se. “Ele não está bravo. Ele está… intrigado. Ele me disse que eu tive uma boa iniciativa, mas que a execução foi amadora.” Mihael parecia irritado com a crítica. “Sua mãe ajudou,” Kevin disse. “Minha mãe preparou o terreno,” Mihael corrigiu. “Ela sabe como lidar com ele. Agora, temos um problema.” “Qual?” “Você precisa saber a história,” Mihael disse. “Se meu pai te fizer perguntas, você tem que ter uma resposta perfeita. Eu disse a ele que você é Kevin Souza, um primo de segundo grau por parte de mãe que está de passagem por causa de um problema familiar. Você não pode cometer erros.” Mihael se levantou e pegou um bloco de notas e uma caneta da escrivaninha. Ele se sentou ao lado de Kevin. “Preste atenção. Você não vai conseguir dormir agora. Temos muito trabalho a fazer.” Mihael começou a escrever no bloco de notas, a letra dele era precisa e angular. “Seu pai é o Tio Marcus, da fazenda em Goiás. Você veio para a capital para resolver a herança de sua avó. Você está hospedado aqui porque seu pai confia em mim e na minha família.” Kevin olhou para a lista. A mentira era elaborada, mas convincente. Ele era um garoto de oito anos que havia mentido apenas sobre pequenos detalhes na escola. Mentir para o pai de Mihael, um homem que irradiava perigo, era outra coisa. “Eu não sei se consigo,” Kevin sussurrou. “Você consegue,” Mihael disse, a voz firme. “Você tem que conseguir. A alternativa é a rua. Ou a polícia. Você não quer isso. Você vai decorar cada detalhe.” Mihael olhou para Kevin, e pela primeira vez, Kevin viu uma faísca de algo parecido com preocupação nos olhos de Mihael. “Eu vou te treinar até o jantar. Você vai estar pronto.” Mihael entregou o bloco de notas para Kevin. “Leia. Memorize. Eu volto em vinte minutos para começar o interrogatório.” Mihael se levantou e foi até a estante, pegando o livro em Latim novamente. “Eu tenho que terminar isso antes de começar o treinamento. Eu não posso atrasar meus estudos por sua causa.” Mihael voltou para a cama e sentou-se, abrindo o livro. Ele parecia completamente absorvido na leitura, ignorando Kevin. Kevin pegou o bloco de notas. A lista de mentiras parecia um roteiro de teatro. Ele olhou para a porta, sentindo o peso da expectativa de Mihael. Ele não podia falhar. Ele se sentia pequeno e assustado, mas determinado a sobreviver àquela situação. Ele começou a ler, repetindo o nome do "Tio Marcus" e a "herança da avó" em sua mente. Ele teria que ser convincente. O pai de Mihael não era um homem fácil de enganar. Kevin olhou para Mihael, que lia o Latim com total concentração. Kevin se ajeitou na cama, pronto para o treinamento. Ele teria que se tornar o primo distante, Kevin Souza. Mihael não levantou os olhos do livro, mas Kevin sabia que ele estava esperando. Kevin começou a ler o roteiro, a ansiedade crescendo. Ele não sabia se conseguiria sustentar a mentira. Ele sabia que o jantar seria o teste final. Ele olhou para a porta, desejando que Mihael voltasse a atenção para ele. Mihael virou a página, o som sutil do papel era o único som no quarto. Kevin sabia que não podia mais adiar. Ele precisava começar a memorizar a história, e precisava ser perfeito. Ele sentiu o pânico sutil, mas o foco de Mihael o impulsionava. Kevin respirou fundo e começou a ler a primeira linha do roteiro. Ele estava sozinho, mas não totalmente. Ele estava sob a proteção de um garoto estranho e de sua família calculista. Ele só precisava sobreviver ao jantar. Kevin continuou lendo, o silêncio da casa era opressor. Ele estava exausto, mas a ameaça do pai de Mihael o mantinha acordado. Ele olhou para o moletom que vestia, as roupas de um garoto que não tinha nada em comum com ele, mas que agora era seu único aliado. Ele se concentrou nas palavras, tentando absorver a história falsa. Mihael continuava lendo, a indiferença dele era um muro. Kevin sabia que a única coisa que importava agora era a preparação. Ele tinha que ser impecável. Ele voltou a ler o nome do "Tio Marcus", sentindo o peso da mentira. O jantar seria em poucas horas. Kevin estava encolhido na cama, o bloco de notas nas mãos, esperando timidamente que Mihael voltasse.

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