Chapter 2: O Refúgio Secreto e a Primeira Impressão
Kevin aceitou a mão estendida de Mihael, o alívio de ser salvo daquela situação superava o constrangimento por ter sido pego em uma situação tão vulnerável. Mihael o puxou para fora da praça movimentada, e eles começaram a andar rapidamente. Kevin tentava acompanhar o passo do garoto mais velho, percebendo que Mihael se movia com uma eficiência silenciosa, diferente da pressa desorganizada das outras pessoas na praça.
Mihael não olhava para trás, e sua expressão não mudou. Kevin observava o garoto, a estranheza pela cor da pele permanecia, mas agora havia também uma dose de admiração pela forma como ele havia lidado com os adolescentes. Mihael conduziu Kevin para fora da avenida principal, virando em uma série de ruas secundárias e becos estreitos. O barulho da cidade grande começou a diminuir, substituído pelo eco de seus passos no asfalto.
Kevin se esforçava para acompanhar o ritmo, o casaco de lã de Jorge parecia ainda mais pesado agora. Ele precisava de alguma explicação.
“Para onde estamos indo?” Kevin perguntou, a voz um pouco ofegante.
Mihael virou em um beco mal iluminado que cheirava a lixo. Ele sequer parou de andar, respondendo sem olhar para Kevin.
“Para um lugar seguro,” Mihael disse de forma sucinta. “Você não pode ficar na rua. Não na capital, especialmente perto do Natal.”
“Mas eu preciso ir para a rodoviária,” Kevin disse. Ele achava que aquele era o plano mais lógico, embora soubesse que seria difícil.
Mihael finalmente parou em frente a uma parede de tijolos pichada, esperando que Kevin o alcançasse. O garoto negro olhou para ele com um olhar de quem estava lidando com uma criança irritante.
“Você acha que ir para a rodoviária é uma boa ideia?” Mihael perguntou. Ele estava sério, e a pergunta não parecia retórica. “Você estava prestes a ser roubado na frente de dezenas de pessoas, e ninguém se importou. Acha que na rodoviária vai ser diferente? As pessoas que te levariam de volta para casa não te notaram no ônibus, não vão te notar agora.”
Kevin processou a informação. Era uma verdade fria e direta. A família grande o havia esquecido. Seus pais não sentiriam falta dele até a ceia de Natal, e isso seria daqui a horas. Ele não queria ir para a polícia; ele imaginava os formulários, as perguntas, a possibilidade de ser colocado em algum tipo de abrigo temporário. A ideia o assustava.
“Eu não tenho onde ficar,” Kevin admitiu, olhando para os próprios sapatos.
“Eu sei,” Mihael disse, recomeçando a andar. Ele escalou uma pequena mureta e esperou que Kevin o seguisse. “É por isso que estou te levando para a minha casa. Por enquanto, é melhor do que ficar na rua.”
Kevin o seguiu, escalando a mureta com dificuldade devido ao casaco pesado. Eles estavam agora em uma rua residencial mais calma. As casas eram grandes e pareciam bem cuidadas, com jardins na frente e iluminação suave. Era um contraste total com o caos da praça.
“Sua casa?” Kevin perguntou. “Seus pais sabem que você está trazendo um garoto perdido?”
Mihael fez uma pausa. Ele olhou para Kevin e um pequeno sorriso de escárnio surgiu em seu rosto.
“Não,” ele disse simplesmente. “Eles não sabem. E é melhor que continue assim por enquanto. Meu pai é… particular. Mas se você ficar quieto, ele não vai te notar. Ele está ocupado com outras coisas.”
Kevin ponderou isso. Estar escondido em uma casa desconhecida era arriscado, mas a alternativa era a rua. Ele preferia o risco de um pai particular.
Enquanto andavam, Kevin não conseguia desviar o olhar de Mihael. O garoto negro era o ponto focal de sua atenção, e ele estava tentando entender o que via. Ele vinha de uma cidade pequena onde todos eram brancos. A diversidade racial era algo que ele só tinha visto em programas de televisão, e Mihael parecia uma figura retirada de um contexto completamente diferente.
Ele sentiu a necessidade de perguntar, embora soubesse que poderia ser rude. Kevin não tinha muita experiência social, e a franqueza da infância o impulsionou.
“Você é… diferente,” Kevin disse, tentando encontrar as palavras certas.
Mihael continuou andando. “Diferente como?”
“Sua pele,” Kevin disse, gesticulando desajeitadamente. “É muito escura. Eu nunca vi alguém assim de perto.”
Mihael parou novamente, desta vez perto de um poste de luz. Ele olhou para Kevin com uma calma que Kevin achou perturbadora. Mihael não parecia ofendido, mas sim observando um espécime curioso.
“Sim, sou negro,” Mihael respondeu, sem rodeios. “Você é branco. Loiro e pálido, para ser exato. Parece que você nunca saiu da sua bolha.”
Kevin se encolheu. Ele não queria ter soado ignorante, mas era a verdade.
“Minha família é assim,” Kevin murmurou. “Todos são brancos. Eu achei que… todo mundo fosse assim.”
Mihael soltou uma risada curta, que não chegava a ser alegre. Era mais um som de descrença.
“O mundo é grande, Kevin,” Mihael disse, retomando a caminhada. “Você vai ter que se acostumar com a ideia de que existem pessoas diferentes de você. Pessoas que não parecem um copo de leite derramado.”
Kevin parou por um momento, absorvendo a piada. Ele olhou para sua mão pálida, que contrastava com o casaco verde-escuro. Mihael tinha razão, ele era pálido. E, de repente, a indiferença prática de Mihael sobre a própria cor da pele fez Kevin se sentir menos estranho por ter perguntado. Mihael não havia se importado com a pergunta, ele apenas a havia respondido de forma direta.
“Pelo menos a minha pele não parece leite,” Mihael comentou, dando um pequeno empurrão em Kevin para que ele se apressasse.
Eles continuaram andando por mais alguns minutos, virando em uma rua ainda mais isolada e silenciosa. As casas aqui eram ainda maiores, com portões de ferro forjado e muros altos. O luxo era evidente, e Kevin, apesar de vir de uma família de classe média alta, percebia que aquele era outro nível de riqueza.
Mihael parou em frente a um muro de pedra alto, que parecia proteger uma propriedade gigantesca. A estrutura era imponente, escura e cercada por árvores bem cuidadas que pareciam engolir a luz. Kevin levantou a cabeça, tentando ver o topo da casa, mas o muro era muito alto.
“É aqui,” Mihael sussurrou. “Silêncio agora.”
Kevin obedeceu, sentindo uma pontada de ansiedade. Ele estava prestes a invadir uma mansão.
Mihael não foi até o portão principal. Em vez disso, ele se dirigiu para uma pequena abertura na lateral do muro, escondida por arbustos densos. A abertura parecia ser uma passagem de manutenção ou talvez uma entrada de serviço raramente usada. Mihael se agachou e começou a se esgueirar.
“Você vem ou vai ficar aí olhando?” Mihael perguntou, sem paciência.
Kevin se abaixou, seguindo Mihael. O buraco era estreito e Kevin teve que se espremer, o casaco de lã de Jorge prendendo nas pedras. Ele sentiu um arrepio na espinha. Parecia que ele estava fazendo algo criminoso.
Eles saíram do outro lado em um jardim traseiro que parecia interminável. Estava escuro, mas a luz da lua e algumas luzes de segurança distantes revelavam a escala do lugar. A casa em si era uma mansão. Não era apenas grande; era monumental. Tinha vários andares, janelas enormes e uma arquitetura que parecia ter sido projetada para intimidar.
“É realmente grande,” Kevin sussurrou, a voz cheia de espanto.
“É só uma casa,” Mihael disse, com total indiferença. Ele começou a se mover pela grama, evitando as áreas iluminadas. “Fique perto de mim e não pise nos canteiros de flores. Minha mãe ficaria louca.”
Eles atravessaram o jardim, e Kevin podia ouvir o som distante de água correndo, talvez uma fonte ou piscina. O lugar era silencioso, quase opressor. A diferença entre a casa de Kevin, que era grande, mas comum, e esta mansão era chocante.
Mihael o levou em direção aos fundos da casa. Eles se aproximaram de uma porta de serviço discreta, que parecia levar à cozinha. Mihael pegou uma chave de dentro do bolso da calça e destrancou a porta rapidamente. O movimento era familiar, sugerindo que ele fazia isso frequentemente.
Eles entraram na cozinha. O cheiro era de limpeza e especiarias. A cozinha era gigantesca, com balcões de mármore e equipamentos de aço inoxidável que pareciam pertencer a um restaurante.
“Rápido,” Mihael sussurrou, fechando a porta com cuidado. “O pai deve estar no escritório agora, mas nunca se sabe.”
Mihael se moveu com confiança, acendendo apenas uma pequena luz debaixo de um dos armários, que dava um brilho fraco e suficiente. Ele abriu uma porta que Kevin não tinha notado, que estava disfarçada em um painel de madeira.
“Aqui,” Mihael apontou para a abertura. “Porão de serviço. É onde o pessoal de limpeza guarda as coisas. Ninguém vai procurar por você aqui.”
Kevin olhou para o porão. Era um espaço pequeno e escuro, cheio de produtos de limpeza, baldes e vassouras. O cheiro de alvejante era forte.
“Eu vou ter que ficar aí?” Kevin perguntou, hesitante.
“Por um minuto, sim,” Mihael respondeu, empurrando Kevin levemente para dentro. “Eu preciso ter certeza de que a barra está limpa e que posso te levar para o meu quarto sem sermos vistos.”
Kevin se espremeu entre os produtos de limpeza, sentindo o cheiro químico invadir suas narinas. O porão era apertado, e ele teve que se agachar para caber. Ele podia ouvir Mihael do lado de fora, a respiração do garoto era calma.
Mihael estava prestes a fechar a porta quando um som o fez parar. O som vinha do corredor principal, e era o som de passos firmes e pesados.
Mihael fechou a porta do porão apenas o suficiente para que Kevin estivesse na escuridão, mas conseguisse ouvir. Kevin parou de respirar.
Os passos se aproximaram da cozinha. Um homem entrou no cômodo. Kevin não conseguia ver o rosto dele, apenas a silhueta alta e imponente. A aura de autoridade que o homem carregava era palpável, mesmo de onde Kevin estava escondido.
“Mihael?” A voz era grave e ressonante. Não era um tom de pergunta, mas de afirmação.
“Pai,” Mihael respondeu, sua voz soando perfeitamente calma, sem vestígios da pressa de minutos atrás. “Eu estava pegando água. Tive sede.”
“A esta hora?” O homem perguntou. Ele parecia desconfiado.
Kevin engoliu em seco, agarrando o casaco de Jorge com força. Ele podia ouvir o barulho do homem se movendo pela cozinha, talvez pegando a água que Mihael havia mencionado.
“Eu estava lendo e me distrai,” Mihael disse. Sua resposta era prática e não demonstrava nervosismo. Kevin se perguntava como Mihael conseguia manter a calma.
“Você deveria estar dormindo,” o pai disse. O tom dele era de comando, não de sugestão. “Você tem um longo dia amanhã.”
“Eu sei, Pai. Só vou beber a água e voltar para o quarto,” Mihael disse.
Houve um breve silêncio, que pareceu uma eternidade para Kevin. Ele podia ouvir o som da água sendo despejada em um copo.
“E o que é isso?” o pai de Mihael perguntou, a voz mudando, tornando-se mais afiada.
Kevin quase deu um pulo de susto. Mihael tinha sido descoberto?
“O quê, Pai?” Mihael perguntou.
“Esse cheiro,” o pai disse. “Cheiro de diesel e rua. Você estava lá fora por muito tempo. E o que é essa sujeira nos seus sapatos?”
Kevin percebeu o erro. Mihael tinha pisado em alguma sujeira ao entrar na casa, e o cheiro da rua devia ter vindo da breve incursão.
Mihael não vacilou.
“Eu pisei em uma poça de lama no jardim ao voltar. Deve ser por causa disso. Eu já estava voltando para limpar.” Mihael não hesitou. Ele tinha uma resposta pronta para tudo.
O pai de Mihael pareceu aceitar a explicação, ou talvez apenas estivesse cansado demais para discutir.
“Limpe imediatamente. Não quero sujeira na casa,” o pai disse. Ele deu um suspiro audível. “Não perca mais tempo. Vá para a cama.”
Os passos pesados recomeçaram, se afastando da cozinha. Kevin esperou até ter certeza de que o homem tinha ido embora.
Mihael abriu a porta do porão de serviço. Kevin saiu, cambaleando um pouco, o cheiro de alvejante grudado em sua roupa.
“Essa foi por pouco,” Kevin sussurrou, tentando recuperar o fôlego.
Mihael não parecia afetado. “Sim. Ele é sempre assim. Vamos. Você precisa tomar um banho e se esconder no meu quarto.”
Eles saíram da cozinha e entraram em um corredor de serviço, que era menos imponente que o resto da casa. Mihael subiu uma escada estreita, sinalizando para Kevin subir atrás dele. Eles subiram dois lances de escada, e o silêncio da casa era ensurdecedor.
“Onde está sua mãe?” Kevin perguntou, mantendo a voz baixa.
“Ela está em uma reunião,” Mihael respondeu. “Ela geralmente fica acordada até tarde.”
Eles chegaram ao segundo andar, onde os corredores eram largos e iluminados por luzes suaves. As paredes eram adornadas com obras de arte que Kevin não conseguia identificar. Mihael o guiou por um corredor extenso, até chegar a uma porta no final.
“Este é o meu quarto,” Mihael disse, abrindo a porta.
Kevin entrou no quarto. Era grande, como o resto da casa, mas surpreendentemente simples. Não havia brinquedos espalhados, ou posters. Havia uma cama grande e arrumada, uma escrivaninha com um computador, e uma estante de livros que ocupava uma parede inteira. Os livros pareciam sérios, não literatura infantil.
“Meu quarto é o único lugar que é realmente meu,” Mihael explicou, fechando a porta. “Ninguém entra aqui sem a minha permissão, exceto a faxineira, e ela só vem de manhã. É o lugar mais seguro para você.”
Mihael se dirigiu a um armário e tirou uma toalha limpa e algumas roupas de moletom, que pareciam ser um pouco grandes para ele, mas que Kevin poderia usar.
“Você precisa de um banho,” Mihael disse, olhando para Kevin. “Você cheira a rua e alvejante. E a poeira daquela rodovia. O banheiro fica ali.” Ele apontou para uma porta lateral.
Kevin agradeceu, pegando as roupas e a toalha. Ele se dirigiu ao banheiro, aliviado por ter a chance de se lavar. O banheiro era grande, com uma banheira e um chuveiro de vidro. Ele tirou o casaco de Jorge, colocando-o sobre a pia, e olhou para si mesmo no espelho. Ele estava realmente sujo, e o rosto exausto confirmava a aventura que havia passado.
Ele ligou o chuveiro, deixando a água quente lavar a sujeira da estrada. O calor era reconfortante, e a sensação de limpeza era revigorante. Ele esfregou o cabelo, tirando o diesel e a poeira. O cansaço da viagem e do susto o atingiu.
Enquanto se secava, ele vestiu as roupas de Mihael. O moletom era macio e grande, cobrindo quase todo o corpo. O cheiro era neutro e limpo, uma mudança bem-vinda em relação ao cheiro do casaco de lã.
Ele saiu do banheiro e Mihael estava sentado na cama, lendo um livro. A capa era escura e o título era em uma língua que Kevin não conseguia ler. Mihael parecia completamente absorvido na leitura.
“Pronto,” Kevin disse, tentando não perturbar Mihael.
Mihael ergueu os olhos do livro, apenas um segundo.
“Bom. Coloque o casaco sujo no cesto de roupa. Eu cuido disso amanhã,” Mihael instruiu.
Kevin obedeceu, colocando o casaco de Jorge no cesto. Ele se aproximou da cama, sentindo-se um pouco estranho por estar ali.
“Obrigado, Mihael,” Kevin disse. “Por tudo. Por me salvar dos garotos e por me deixar ficar aqui.”
Mihael fechou o livro, marcando a página. Ele colocou o livro na mesa de cabeceira. Ele olhou para Kevin com a mesma expressão séria.
“Não precisa agradecer,” Mihael disse. “Eu só não gosto de ver idiotas incomodando crianças mais novas. Além disso, você precisa de um lugar para dormir. Não quero ser responsável por um garoto congelando na rua no Natal.”
Kevin subiu na cama, que era macia e confortável. Ele se ajeitou sob o edredom, e o calor o envolveu.
“Você não está cansado?” Kevin perguntou. Ele percebia que Mihael estava acordado e lendo.
“Um pouco,” Mihael respondeu. “Mas eu não durmo muito. Preciso terminar de ler isto.” Ele gesticulou para o livro.
Kevin olhou para o relógio digital na mesa de Mihael. Eram quase meia-noite. O dia tinha sido longo, assustador e cheio de reviravoltas. Ele estava seguro agora, escondido no quarto de um garoto estranho que o havia salvado. Ele estava exausto demais para pensar nas implicações de estar ali, na casa de um garoto que não parecia ter medo de nada.
Kevin fechou os olhos. A última coisa que ele viu foi Mihael pegando o livro novamente, a luz fraca da luminária iluminando seu rosto concentrado. Kevin adormeceu, o som suave da respiração de Mihael ao lado dele era o único conforto no ambiente desconhecido.
Mihael leu por mais alguns minutos, virando as páginas com um som quase inaudível. Ele parou de ler quando percebeu que a respiração de Kevin estava profunda e regular. Ele olhou para o garoto loiro, que estava encolhido sob o edredom, parecendo menor e mais vulnerável agora que estava limpo.
Mihael fechou o livro de novo, e apagou a luz. Ele se deitou na cama, ao lado de Kevin, e olhou para o teto escuro. Ele não estava acostumado a ter companhia em seu quarto. Ele precisava de silêncio para processar as informações do dia, e a presença de Kevin era uma distração. Mas ele sabia que o garoto não podia ficar na rua. Mihael pensou no pai. Ele teria que lidar com a situação de Kevin amanhã, mas por agora, o garoto estava seguro.
Mihael não dormiu imediatamente. Ele apenas ficou deitado, pensando no que faria com Kevin, e como explicaria a situação para o pai. Ele sabia que precisava de um bom plano, porque o pai não aceitaria uma criança desconhecida facilmente. Mihael respirou fundo. Ele tinha tempo para pensar. Kevin estava dormindo. Mihael apenas ficou deitado no escuro, ouvindo os sons distantes da noite, enquanto Kevin dormia profundamente ao seu lado.
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