Capítulo 1: A Percepção da Ausência Kevin estava na beira da estrada. Ele tinha oito anos e a confusão sobre onde o ônibus de sua família o tinha deixado era o problema imediato. A viagem de Natal tinha começado caótica, como sempre acontecia com sua família grande. Ninguém parecia se importar muito com quem estava ou não no ônibus. Ele simplesmente presumiu que alguém notaria sua ausência rapidamente, mas agora, olhando para trás, percebia que o veículo tinha sumido há muito tempo, deixando-o sozinho em uma rodovia barulhenta. O ar cheirava a diesel e poeira, e o som constante de carros e caminhões passando era quase ensurdecedor. Kevin não tinha ideia de onde estava. A paisagem era de asfalto cinza e arbustos secos, bem diferente das árvores de Natal e das luzes que ele esperava ver na cidade do interior para onde supostamente iriam. Ele se sentou na beira da estrada por um momento, as pernas doendo por ficar tanto tempo em pé. Ele pegou um pedaço de pão velho que tinha guardado no bolso da jaqueta, mastigando devagar. Não era muito, mas era tudo que tinha. Ele se levantou, decidindo que ficar parado não ia resolver nada. Ele começou a caminhar, seguindo o fluxo dos carros. Ele pensava na família. Eram muitos irmãos, primos e tios, e ele geralmente era o garoto esquecido no canto. Ele nunca era o centro das atenções, e isso, ironicamente, agora era um problema real. Eles só perceberiam sua falta quando fossem desembarcar as malas, ou talvez só na ceia, o que parecia uma eternidade. A ideia o encheu de uma mistura estranha de raiva e aceitação. Enquanto andava, um caminhão grande diminuiu a velocidade ao se aproximar dele. Era um veículo de carga vermelho e azul, fazendo um barulho estrondoso. O motorista buzinou brevemente, depois parou alguns metros à frente. Kevin hesitou, lembrando-se das regras estritas dos pais sobre nunca falar com estranhos, mas a solidão e a exaustão superaram a cautela. O motorista, um homem corpulento com um bigode grisalho e um boné de beisebol, abriu a janela. Ele olhou para Kevin com uma expressão de pena evidente. "Ei, garoto. O que está fazendo sozinho aqui no meio do nada?" O homem perguntou, a voz rouca, mas gentil. Kevin se aproximou da cabine. "Eu me perdi do ônibus da minha família. Acho que desci no lugar errado." O motorista balançou a cabeça lentamente. "Você está a quilômetros de qualquer lugar habitado. Esta é a Rodovia 101, indo direto para a capital. Você não parece um garoto de rua." Kevin ajustou a gola de sua jaqueta, que estava um pouco apertada. "Não sou. Estávamos indo para o interior." "Bom, o interior fica na outra direção, e bem longe daqui," o homem disse. Ele abriu a porta do passageiro. "Olha, não posso te deixar aqui. Entra aí, vou te levar até a cidade grande. É o mais longe que posso ir." Kevin subiu na cabine, a relutância em aceitar a ajuda de um estranho lutando contra o desejo desesperado de sair daquela estrada. A cabine era quente e cheirava a café forte e tabaco velho. O motorista, que se apresentou como Jorge, era quieto enquanto dirigia. Ele ligou o rádio, tocando músicas natalinas que pareciam completamente fora de contexto no calor do caminhão. "Você comeu alguma coisa?" Jorge perguntou depois de um longo silêncio, olhando para Kevin. Kevin balançou a cabeça. Ele não queria admitir que seu pedaço de pão tinha sido tudo. Jorge puxou uma lancheira grande debaixo do assento e abriu-a. Tinha sanduíches, frutas e uma garrafa térmica de chocolate quente. "Pode comer. Não posso te deixar com fome. Minha esposa sempre me faz mais comida do que eu consigo comer em uma semana." Kevin pegou um sanduíche de presunto e queijo, devorando-o em segundos. A comida era reconfortante, e o chocolate quente era delicioso. Ele se sentiu um pouco culpado por aceitar a bondade de Jorge, um estranho, mas estava faminto. Ele pensava em como seus pais reagiriam se soubessem que ele tinha aceitado uma carona e comida de um desconhecido. Provavelmente o puniriam severamente, embora ele duvidasse que eles o encontrassem tão cedo para fazer isso. Jorge notou Kevin tremendo um pouco, mesmo com o calor da cabine. "Você parece ter pego um resfriado na estrada." Ele estendeu a mão para o banco de trás, pegando um casaco grosso, feito de um material de lã verde escura. "Aqui, veste isso. Vai fazer frio na capital. Não é seu, mas vai te manter aquecido." Kevin pegou o casaco. Era pesado e áspero, mas o calor instantâneo que ele proporcionava era inegável. Ele o vestiu sobre sua jaqueta fina, sentindo-se um pouco mais seguro. O peso do casaco era um conforto físico, um pequeno escudo contra a incerteza. A viagem continuou por mais algumas horas. As estradas ficaram mais largas e mais movimentadas. O horizonte começou a se encher de edifícios altos e estruturas de concreto que Kevin nunca tinha visto antes. Era a capital. A cidade era imensa, uma metrópole de vidro e aço que parecia engolir o céu. "É aqui que vou te deixar," Jorge disse, parando o caminhão em uma grande avenida, perto de uma praça movimentada. "Você está na entrada da cidade. De agora em diante, você tem que tomar cuidado. É a capital, garoto. Não é o interior." Kevin desceu do caminhão, sentindo-se pequeno ao lado daquele gigante de metal. Ele olhou para Jorge, sentindo-se na obrigação de agradecer. "Obrigado, senhor. Pela carona, pela comida, e pelo casaco." Jorge sorriu levemente, um gesto cansado. "Não tem de quê. Agora, vá para um lugar seguro. Tente encontrar a rodoviária ou a polícia. E não confie em qualquer um por aí." O caminhão de Jorge acelerou, desaparecendo no trânsito intenso da cidade. Kevin ficou ali, o casaco de lã um peso estranho sobre seus ombros. A culpa por ter aceitado a carona de um estranho persistia, mas o alívio de estar em um lugar movimentado era maior. Pelo menos aqui havia pessoas e a chance de encontrar alguém que pudesse ajudá-lo. Ele começou a andar pela calçada, a cabeça erguida, tentando parecer confiante. O contraste entre a cidade grande e o que ele estava acostumado era chocante. Lojas de luxo, carros caros e pessoas vestidas de forma impecável. Tudo era barulhento, apressado e, de alguma forma, assustador. Kevin passou por uma vitrine grande de uma loja de roupas elegantes. Ele parou, curioso. O vidro refletia a imagem de um menino loiro, de olhos azuis, vestindo um casaco de lã grande demais. Seu rosto estava sujo com a poeira da viagem e a exaustão o fazia parecer mais jovem do que seus oito anos. Ele se viu. O menino loiro e arrumado, que tinha saído de casa limpo e bem vestido para a viagem de Natal, agora estava coberto pela sujeira da estrada, parecendo um pequeno andarilho. Seus cabelos loiros estavam desgrenhados e ele parecia um intruso naquele ambiente sofisticado. A imagem era um contraste gritante com a loja de luxo, que vendia casacos de marca e vestidos caros. Ele ajustou o casaco de Jorge, que o fazia parecer um pequeno urso. Aquele casaco era uma evidência da sua situação: ele estava perdido e dependia da bondade dos outros. Kevin saiu da frente da loja, sentindo-se exposto. Ele precisava de um plano. O primeiro passo era encontrar a rodoviária. Talvez lá ele encontrasse alguém que pudesse ligar para seus pais, ou pelo menos um funcionário que soubesse o que fazer com uma criança perdida. Ele chegou a uma praça que parecia o centro de toda a atividade da cidade. Era um lugar vibrante, cheio de vendedores ambulantes, artistas de rua e pessoas indo e vindo. O ar estava mais limpo aqui do que na rodovia, e o cheiro era uma mistura de comida de rua e perfume caro. Kevin se aproximou de um senhor que vendia jornais, tentando reunir coragem para falar. "Com licença, senhor," Kevin disse, sua voz um pouco mais alta do que o pretendido. O vendedor de jornais, um homem idoso e magro, olhou para ele com impaciência. "O que é? Estou ocupado." "Onde fica a rodoviária principal?" Kevin perguntou, tentando soar educado. O homem apontou com o polegar para a direita. "Quatro quarteirões naquela direção. Mas é um lugar grande. Você está procurando por alguém?" Antes que Kevin pudesse responder, ele foi interrompido. "Ei, olha só o que temos aqui," uma voz rouca disse atrás dele. Kevin se virou. Eram três adolescentes, talvez com quatorze ou quinze anos. Eles estavam vestidos com roupas largas e tinham expressões de quem procurava problemas. O líder do grupo, um garoto alto com cabelo raspado e uma jaqueta de couro desgastada, deu um passo à frente. "O que um pirralho como você está fazendo sozinho na praça?" o garoto perguntou, inclinando-se, fazendo Kevin se encolher ligeiramente. "Eu só estou procurando a rodoviária," Kevin respondeu, tentando manter a voz firme, mas sentindo o medo começar a subir pela garganta. O segundo garoto, que era mais baixo e tinha um piercing na sobrancelha, riu. "Olha o casacão dele. Parece que ele pegou emprestado do papai. Que gracinha." "E o cabelo dele, tão loirinho. Parece um anjinho perdido," o terceiro garoto completou, com um sorriso de escárnio. O líder estendeu a mão, aproximando-se do rosto de Kevin. "Acho que você tem algo que nos pertence, anjinho. Uma criança sozinha na capital no Natal deve ter uns trocados para o Papai Noel aqui, não é?" Kevin deu um passo para trás. "Eu não tenho dinheiro." "Não minta para a gente," o líder disse, a voz se tornando mais ameaçadora. "Vamos lá, facilita as coisas. O casaco parece bom, ou talvez a mochila." A situação escalou rapidamente. O líder agarrou o braço de Kevin, forçando-o a dar um passo à frente. O garoto alto era muito mais forte e Kevin percebeu que não tinha como resistir. A praça estava movimentada, mas ninguém parecia prestar atenção ao pequeno confronto. As pessoas apressadas estavam preocupadas com suas próprias vidas e compras de Natal. Kevin tentou puxar o braço, mas o aperto do adolescente era firme. Ele começou a se desesperar. Ser intimidado era uma coisa; ser roubado e possivelmente agredido era outra. Ele pensou em Jorge, no quanto ele se sentiria culpado por ter perdido o casaco que lhe foi dado. "Larga ele," uma voz calma e surpreendentemente profunda disse de repente. O grupo de adolescentes parou e olhou na direção da voz. Kevin também se virou, tentando ver quem tinha intervindo. Um garoto estava parado a poucos metros de distância, observando a cena. Ele parecia ter uns dez anos, talvez dois anos mais velho que Kevin. Ele era mais alto que Kevin, mas não tão grande quanto os adolescentes. O que chamou a atenção de Kevin imediatamente foi a cor da pele do garoto. Ele era negro, com olhos e cabelos pretos. Kevin nunca tinha visto alguém negro de perto antes, e o contraste era marcante. Ele estava acostumado apenas com pessoas brancas, como sua família. O garoto desconhecido usava roupas escuras e limpas, diferentes das roupas de marca ou das roupas de rua dos adolescentes. Ele não parecia assustado, mas sim entediado. A maneira como ele estava parado, a postura ereta e a expressão séria, transmitia uma presença que parecia desproporcional à sua idade. "O que você disse, pirralho?" o líder dos adolescentes, o garoto de cabelo raspado, perguntou, soltando Kevin momentaneamente para se virar. O garoto negro não se moveu, apenas manteve o olhar fixo no grupo. "Eu disse para soltá-lo," o garoto repetiu, a voz mantendo um tom de autoridade que Kevin achou estranho em alguém tão jovem. "Vocês estão perdendo tempo com uma criança. Têm certeza de que não têm coisas melhores para fazer do que roubar um casaco velho?" O líder do grupo cerrou os punhos. "Quem você pensa que é? Você quer apanhar também?" O garoto desconhecido deu um passo à frente, e a mudança na atmosfera foi imediata. Ele não fez uma ameaça física óbvia, mas a maneira como ele se moveu, com uma precisão e confiança inesperadas, fez os adolescentes hesitarem. "Eu sou alguém que não tem tempo para brincadeiras," o garoto negro disse, a voz baixa, mas penetrante. "Eu sei quem vocês são. Eu sei onde vocês se reúnem. E eu sei o que acontece com garotos que incomodam as pessoas erradas nesta cidade." O tom dele era frio e direto, sem a raiva ou a insegurança típica de uma criança. As palavras eram adultas e tinham um peso que Kevin não conseguia entender completamente, mas que claramente afetou os adolescentes. O líder dos adolescentes vacilou. Seus olhos se arregalaram levemente. Ele olhou para o garoto negro, depois para seus amigos, e o pânico começou a se instalar em seu rosto. "Nós não estamos procurando problemas," o líder murmurou, a bravata de antes desaparecendo. "Então parem de criá-los," o garoto negro respondeu, a voz como gelo. "Vão embora. Agora." Os adolescentes não precisaram ser avisados duas vezes. O líder acenou para seus amigos e eles se dispersaram rapidamente na multidão, praticamente correndo. Em um momento, eles estavam ameaçando Kevin; no próximo, tinham desaparecido completamente, assustados com a intervenção do garoto desconhecido. Kevin ficou parado, surpreso com a rapidez e eficácia da intervenção. Ele olhou para o garoto negro, sentindo uma onda de alívio e gratidão, misturada com a estranheza de estar na presença de alguém tão diferente de tudo que ele já tinha visto. O garoto o encarou, a expressão séria e inabalável. O garoto negro olhou para Kevin, que ainda estava se recuperando do susto. A luz do sol da tarde destacava o contraste entre eles: Kevin, loiro, de olhos azuis, parecendo frágil e assustado; e o outro garoto, negro, com uma aura de calma e autoridade que desmentia sua idade. Ele estendeu a mão para Kevin. Não era um gesto caloroso de amizade, mas sim um convite prático, quase uma ordem. O rosto do garoto não demonstrava sorriso, ou qualquer tipo de emoção acolhedora. "Você está em perigo aqui. Venha comigo," ele disse, a voz final e sem espaço para discussão.

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