Chapter 3: A Marca dos Von Ivory
Três anos se passaram desde que Mello tomou a decisão de manter Sofia.
O apartamento temporário tinha se tornado permanente. Mello comprou móveis adequados para uma criança. Uma cama pequena substituiu a cama improvisada. Brinquedos ocupavam prateleiras que antes estavam vazias. A cozinha agora tinha pratos e copos coloridos de plástico ao lado dos utensílios normais.
Sofia tinha três anos agora. Ela corria pelo apartamento com a energia típica de crianças nessa idade. O cabelo dela tinha crescido e Mello precisava cortá-lo regularmente porque ela odiava salões. Era mais fácil fazer isso em casa com uma tesoura e muita paciência.
A vida tinha mudado completamente. Mello não trabalhava mais como terrorista. Ele tinha abandonado esse caminho completamente quando Sofia começou a andar. Impossível planejar operações quando uma criança pequena precisava de atenção constante. Impossível desaparecer por dias quando alguém dependia dele para tudo.
No lugar do trabalho anterior, Mello tinha encontrado formas mais convencionais de ganhar dinheiro. Trabalhos de consultoria de segurança usando conhecimentos que tinha adquirido antes. Hackeamento freelance que podia fazer de casa enquanto Sofia dormia. Nada glorioso ou emocionante, mas pagava as contas e permitia que ele estivesse presente.
Sofia acordou cedo naquela manhã. Mello a ouviu saindo da cama e correndo pelo corredor antes mesmo do sol nascer completamente. Ela entrou no quarto dele pulando.
"Mamãe!" Sofia gritou subindo na cama. "Mamãe acorda!"
Mello abriu os olhos. Tinha parado de corrigir ela há meses. No começo tentava ensinar que ele era "papai", mas Sofia tinha aprendido "mamãe" primeiro e se recusava a mudar. A palavra tinha se fixado na cabeça dela de forma permanente.
"Ainda é cedo," Mello disse olhando para o relógio. Seis e meia da manhã. "Volta para a cama."
"Não quero!" Sofia pulou na cama com mais força. "Quero café da manhã!"
Discussões sobre horários nunca funcionavam com crianças de três anos. Mello tinha aprendido isso rapidamente. Era mais fácil simplesmente ceder e começar o dia do que argumentar por meia hora.
Ele se levantou e caminhou até a cozinha. Sofia o seguiu falando sem parar sobre um sonho que tinha tido envolvendo um cachorro gigante. A história não fazia muito sentido, mas Mello tinha aprendido a apenas concordar enquanto preparava o café da manhã.
Cereais com leite para Sofia. Café preto para ele. A rotina matinal tinha se tornado automática depois de três anos. Sofia sentou à mesa balançando as pernas enquanto comia. Ela ainda era pequena demais para alcançar o chão quando sentava na cadeira.
"Vamos ao parque hoje?" Sofia perguntou com a boca cheia de cereais.
"Talvez," Mello respondeu. Ele tinha trabalho para fazer, mas podia levar o laptop para o parque se necessário. Sofia ficava entretida brincando enquanto ele trabalhava em um banco próximo. "Termina de comer primeiro."
Sofia engoliu rápido e continuou falando. Ela tinha uma capacidade impressionante de falar sem parar sobre qualquer coisa. Mello às vezes se perguntava de onde vinha toda essa energia verbal porque ele certamente não era assim.
Depois do café da manhã, Mello vestiu Sofia com roupas apropriadas para o parque. Ela insistiu em usar o vestido vermelho que odiava sujar, mas ele eventualmente a convenceu a colocar calças e uma blusa simples. Batalhas sobre roupas eram diárias.
O parque ficava a dez minutos de caminhada. Sofia segurou a mão dele durante todo o caminho enquanto continuava sua narrativa sobre o cachorro gigante do sonho. Aparentemente o cachorro podia voar agora. A história tinha evoluído consideravelmente desde a manhã.
O parque estava quase vazio por ser cedo. Algumas mães com crianças pequenas ocupavam os bancos perto da área de brinquedos. Mello escolheu um banco afastado de onde podia ver Sofia brincar enquanto trabalhava.
Sofia correu imediatamente para o escorregador. Mello abriu o laptop e começou a revisar o código que estava trabalhando ontem. Um cliente tinha pedido uma auditoria de segurança e ele estava procurando vulnerabilidades no sistema.
Por uma hora tudo funcionou perfeitamente. Sofia brincava sozinha, ocasionalmente gritando "mamãe olha!" quando fazia algo que considerava impressionante. Mello respondia sem tirar os olhos do laptop na maioria das vezes.
Então Sofia gritou de uma forma diferente.
Mello levantou a cabeça imediatamente. Sofia estava no chão perto do balanço segurando o joelho. Ele fechou o laptop e correu até onde ela estava.
"O que aconteceu?"
"Caí!" Sofia chorava alto. Lágrimas desciam pelo rosto dela. "Dói!"
Mello examinou o joelho. Tinha um corte que sangrava, mas não parecia profundo. Provavelmente tinha tropeçado e raspado no chão de concreto. Ele pegou um lenço do bolso e pressionou contra o ferimento.
"Vamos limpar isso," ele disse pegando Sofia no colo. Ela chorava contra o ombro dele enquanto ele caminhava de volta ao banco para pegar o laptop.
O posto de saúde mais próximo ficava a quinze minutos. Mello não tinha certeza se o corte precisava de pontos, mas era melhor verificar. Sofia continuava chorando, mais assustada do que realmente machucada.
Na recepção do posto de saúde, a atendente perguntou informações básicas. Nome completo, idade, documentação. Mello forneceu tudo automaticamente enquanto Sofia se agarrava nele.
Esperaram vinte minutos até serem chamados. A sala de atendimento tinha paredes brancas e cheirava a desinfetante. Sofia parou de chorar mas ainda segurava a mão de Mello com força.
A enfermeira que os atendeu era uma mulher mais velha com cabelos grisalhos. Ela examinou o joelho de Sofia com cuidado.
"Não precisa de pontos," ela disse limpando o ferimento. "Só um curativo adequado e vai sarar sozinho."
Sofia fez uma careta quando a enfermeira aplicou o antisséptico, mas não chorou. Mello segurou a mão dela durante todo o processo.
Enquanto colocava o curativo, a enfermeira parou de repente. Ela estava olhando para o rosto de Sofia com uma expressão estranha.
"Essa marca," a enfermeira disse apontando para a área abaixo dos olhos de Sofia. "É raro ver isso."
Mello olhou para onde ela apontava. Sofia tinha duas pequenas marcas de nascença, uma abaixo de cada olho. Eram simétricas, pequenos pontos escuros que sempre estiveram ali. Ele nunca tinha pensado muito sobre elas.
"Que tipo de marca?" Mello perguntou.
"Melanose dérmica simétrica," a enfermeira explicou. "Não é perigoso, apenas raro. Só vejo isso talvez uma vez a cada alguns anos. Geralmente é hereditário."
Hereditário. A palavra ficou na cabeça de Mello enquanto a enfermeira terminava de colocar o curativo. Ele não tinha nenhuma marca assim. O que significava que Sofia tinha herdado dos pais biológicos.
Os pais que a tinham abandonado em uma caixa de papelão para morrer.
Depois de sair do posto de saúde, Mello levou Sofia para casa. Ela tinha esquecido completamente do joelho machucado e estava mais interessada em assistir desenhos. Ele a colocou no sofá com a televisão ligada e foi para o quarto.
O laptop ainda estava na mochila. Mello o pegou e abriu um navegador. Digitou os termos que a enfermeira tinha usado. Melanose dérmica simétrica.
Os resultados confirmavam o que a enfermeira tinha dito. Era uma condição rara e hereditária. Marcas simétricas abaixo dos olhos. Geralmente passava de geração em geração na mesma família.
Mello adicionou mais termos à pesquisa. Marca de nascença rara. Simétrica. Hereditária. Começou a procurar por famílias conhecidas que tinham essa característica.
Levou duas horas de pesquisa até encontrar algo relevante.
Um artigo antigo de uma revista de negócios. A matéria era sobre a família Von Ivory, uma das famílias mais ricas do país. O patriarca da família tinha morrido três anos atrás. O artigo incluía fotos da família inteira.
E cada pessoa na foto tinha as mesmas marcas. Duas pequenas marcas simétricas abaixo dos olhos.
Mello ampliou a foto. As marcas eram idênticas às de Sofia. Exatamente no mesmo lugar. Exatamente do mesmo tamanho.
Ele continuou lendo. A família Von Ivory era conhecida por essas marcas distintivas. Uma característica genética que aparecia em cada geração. A matéria até mencionava que geneticistas tinham estudado a família anos atrás por causa disso.
O patriarca tinha morrido três anos atrás. Mello calculou mentalmente. Sofia tinha sido abandonada mais ou menos na mesma época. A cronologia se encaixava de uma forma que não podia ser coincidência.
Ele abriu mais artigos. Procurou por informações sobre a morte do patriarca. As circunstâncias tinham sido estranhas. Um acidente de carro que matou ele e a esposa simultaneamente. Deixaram um filho adulto, Randal Von Ivory, como único herdeiro.
Exceto que talvez não fosse o único herdeiro.
Mello encontrou fotos de Randal Von Ivory. Um homem jovem, provavelmente no final dos vinte anos. Cabelos de um tom ruivo escuro. Expressão séria na maioria das fotos. E as mesmas marcas abaixo dos olhos.
Se Sofia tinha as marcas, e as marcas eram exclusivas da família Von Ivory, então a conclusão lógica era óbvia. Ela era parte dessa família. Provavelmente filha do patriarca que tinha morrido.
O que explicava porque tinha sido abandonada. Talvez a mãe biológica de Sofia não fazia parte da família oficial. Talvez o patriarca tinha tido um caso. Quando ele morreu, a mãe entrou em pânico e abandonou a criança.
Era especulação, mas fazia sentido considerando as circunstâncias.
Mello olhou para a sala onde Sofia assistia desenhos. Ela estava deitada no sofá abraçando um bichinho de pelúcia. Completamente alheia ao fato de que potencialmente era herdeira de uma fortuna bilionária.
Ele voltou para o laptop e continuou pesquisando. Precisava de mais informações antes de tomar qualquer decisão. Não podia simplesmente aparecer na porta da mansão Von Ivory com uma criança de três anos dizendo que ela era família.
Os artigos sobre a família eram extensos. A fortuna vinha de investimentos e propriedades acumuladas por gerações. Randal Von Ivory tinha herdado tudo quando os pais morreram. Empresas, propriedades, investimentos. O valor total era estimado em bilhões.
E se Sofia realmente era filha do patriarca, então ela tinha direito a parte disso.
Mello fechou o laptop. Precisava pensar sobre o que fazer com essa informação. Podia simplesmente ignorar tudo e continuar criando Sofia como tinha feito nos últimos três anos. Ela era feliz. Tinha tudo que precisava. A fortuna da família Von Ivory não mudaria nada essencialmente.
Mas ela tinha direito de saber de onde vinha. Tinha direito à herança que legalmente pertencia a ela. E Mello não tinha autoridade moral para tomar essa decisão por ela.
Por outro lado, expor Sofia à família Von Ivory significava risco. Se Randal decidisse que queria a irmã sob sua custódia, Mello não tinha recursos legais para lutar contra isso. Os documentos falsos que tinha criado não resistiriam a uma investigação séria. Ele poderia perder Sofia completamente.
A ideia de perder ela causava algo estranho no peito dele. Nos últimos três anos Sofia tinha se tornado a única coisa constante em sua vida. A única pessoa que dependia dele completamente. Perdê-la seria como perder um pedaço de si mesmo.
Mas manter essa informação escondida também parecia errado. Sofia merecia a verdade sobre suas origens. Merecia acesso aos recursos que eram legalmente dela. Mello não tinha direito de negar isso só porque tinha medo de perdê-la.
Ele caminhou até a sala e sentou no sofá ao lado de Sofia. Ela olhou para ele e sorriu.
"Mamãe vai assistir comigo?"
"Sim," Mello respondeu. Sofia se aconchegou contra ele, voltando a atenção para a televisão.
Ele observou as pequenas marcas abaixo dos olhos dela. Tinha visto essas marcas todos os dias nos últimos três anos sem nunca realmente pensar sobre elas. Agora elas pareciam significativas de uma forma que mudava tudo.
A decisão não seria fácil. Qualquer escolha que fizesse teria consequências. Revelar a verdade significava risco de perder Sofia. Esconder a verdade significava negar a ela algo que era legalmente e moralmente dela.
Mello pegou o laptop novamente enquanto Sofia assistia desenhos. Abriu a página com as fotos da família Von Ivory. Olhou para a imagem de Randal Von Ivory, o herdeiro que agora controlava toda a fortuna.
Se decidisse fazer isso, precisaria de um plano. Não podia simplesmente aparecer sem evidências. Precisaria de provas além das marcas de nascença. Testes de DNA provavelmente seriam necessários. Documentação adequada. Talvez até consultoria legal.
Mas antes de tudo isso, precisava decidir se realmente queria fazer isso acontecer.
Sofia riu de algo no desenho. O som era puro e sem complicações. Ela não tinha ideia de que potencialmente vinha de uma das famílias mais ricas do país. Não sabia que o homem nas fotos do laptop podia ser seu irmão. Não entendia nada sobre heranças ou fortunas bilionárias.
Ela só sabia que Mello era "mamãe" e que estava segura e feliz.
Mello olhou para as fotos da família Von Ivory novamente. Estudou o rosto de Randal Von Ivory, tentando encontrar semelhanças com Sofia. O formato dos olhos talvez. A linha do maxilar. Difícil dizer com certeza quando Sofia ainda era muito pequena.
Mas as marcas não mentiam. Elas eram específicas demais para serem coincidência. Sofia tinha o sangue Von Ivory. Era biologicamente parte daquela família, independente de como tinha sido concebida ou porque tinha sido abandonada.
E isso mudava tudo.
Mello salvou todos os artigos relevantes em uma pasta no laptop. Fez capturas de tela das fotos da família. Compilou toda a informação que tinha encontrado sobre as marcas de nascença e sua hereditariedade. Se decidisse seguir em frente, precisaria de tudo isso.
O desenho que Sofia assistia terminou. Ela se virou para Mello com aquela expressão que ele tinha aprendido significava que ela queria algo.
"Mamãe, posso comer biscoitos?"
"Depois do almoço," Mello respondeu automaticamente. "Ainda é cedo."
"Mas eu quero agora!"
"Depois do almoço."
Sofia fez bico mas não argumentou mais. Ela tinha aprendido que Mello não mudava de ideia sobre essas coisas. Voltou a atenção para a televisão onde outro desenho tinha começado.
Mello olhou para ela e depois para o laptop aberto com as fotos da família Von Ivory. Tomou a decisão sem realmente pensar muito sobre ela. Não era uma escolha consciente baseada em lógica ou raciocínio. Era mais uma aceitação de algo inevitável.
Sofia merecia saber a verdade. Merecia ter acesso ao que era legalmente dela. E Mello não tinha direito de esconder essa informação só porque estava com medo de perder ela.
Ele ia procurar Randal Von Ivory. Ia apresentar Sofia. Ia fazer testes de DNA se necessário. Ia garantir que ela tivesse acesso à sua família biológica e à herança que pertencia a ela.
E se isso significasse perdê-la, então pelo menos ele teria feito a coisa certa.
Mello olhou novamente para a tela do laptop, focando nas fotos da família Von Ivory que tinha salvado. Ampliou a imagem mais recente de Randal Von Ivory que tinha encontrado. Era de um evento de caridade há seis meses. O herdeiro estava usando um terno escuro e tinha a mesma expressão séria que aparecia em todas as outras fotos.
As marcas abaixo dos olhos eram claramente visíveis mesmo na foto. Idênticas às de Sofia. Sem margem para dúvida de que compartilhavam a mesma característica genética rara.
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