Capítulo 10: Primeiro Lugar
Sasha acenou com a cabeça em reconhecimento e saiu da biblioteca, a figura de Yuri já esperando silenciosamente no hall. O som de passos firmes e controlados se distanciando era um alívio sonoro para Mello. Finalmente, o ar na sala parecia respirável. Não que Sasha tivesse preenchido o espaço com cheiros ou ruídos altos, mas com uma pressão sutil, mas constante, a pressão do poder sem limites.
Mello sentiu a tensão de seu corpo se dissipar no instante em que o som da porta principal se fechando (um som abafado, o suficiente para indicar que o chefe havia partido, mas não o suficiente para ser inconveniente) chegou aos seus ouvidos.
Mello ainda estava na ponta de seus pés por causa da adrenalina. Ele tinha feito uma jogada arriscada. Usar a palavra “namorado” na frente de Sasha não era apenas uma declaração de carinho; era uma tática de guerra. Era a demarcação de território, uma maneira de dizer que o “ativo de César” tinha uma lealdade profunda, mas também um controle emocional sobre o alvo. Era a arma que Sasha mais temia: a emoção.
César permaneceu parado, de frente para Mello, exatamente onde estava quando Mello soltou a bomba emocional. A expressão em seu rosto, usualmente fechada e estudada, estava completamente aberta – surpresa, incredulidade, e, mais profundamente, o amor não disfarçado que Mello havia aprendido a reconhecer. Era um olhar que não hesitava, não questionava sua presença nele, mas que se encharcava da aceitação recém-anunciada, mesmo que em público forçado.
César levou segundos para processar. A transição que Mello havia buscado – a passagem do "Alpha Frio" para "Meu garoto" – estava finalmente completa, e Mello viu o calor retornar aos olhos azuis de César, engolindo a máscara gélida do herdeiro da máfia.
César deu um passo à frente, e Mello notou a hesitação sutil. Em circunstâncias normais, César teria fechado a distância entre eles com sua eficiência habitual. Mas agora havia um peso ali, o peso daquela única palavra.
“Você disse—” César começou, sua voz voltando ao tom mais suave e submisso que Mello conhecia, o sotaque russo rolando no ‘R’ de maneira mais pronunciada do que em seu discurso de logística. Ele não terminou a frase. Não era preciso.
Mello sentiu uma pontada no estômago. Não de satisfação, mas de… vulnerabilidade. Ele tinha se exposto. Agora, César tinha que corresponder.
“Eu disse,” Mello repetiu, a voz mantendo uma calma que ele não sentia, os olhos fixos na expressão de César. Mello, o estrategista, sabia que um bom plano precisava de escalabilidade, e ele tinha acabado de escalar a aposta para o máximo.
César soltou um suspiro lento, o ar saindo de seus pulmões como se estivesse segurando a respiração desde que Mello entrara na biblioteca. Ele desfez o nó da gravata, um gesto pequeno, mas significativo, de relaxamento.
“Tudo bem,” César disse, a voz cheia de uma ternura que ele reservava apenas para Mello. Ele não estava falando sobre o rótulo, nem sobre a logística do porto de Odessa. Ele estava falando sobre a proposta de Mello, o convite que Mello havia feito. “Tudo bem, *Moy Lyubimyi*.”
*Meu Amado.* César só usava a palavra em russo quando estava emocionado ou exausto.
Ele estava exausto. E emocionado.
“Vamos,” César disse, com um sorriso exausto que não chegava aos olhos. Ele estendeu a mão, mas não para o toque físico. Ele indicava a saída, a prioridade. “Nós vamos para a cama. O resto pode esperar até amanhã.”
Mello sentiu um alívio enorme. A lógica de Mello havia funcionado: o medo do pai, a pressão da transição de poder, e o choque emocional da declaração de Mello o tinham quebrado. César precisava de Mello, do seu santuário, do seu refúgio, não do novo tabuleiro de xadrez que Sasha havia montado.
Mello não hesitou. Ele atravessou a distância que os separava, o roupão de veludo branco deslizando enquanto ele caminhava. Ele não pegou a mão que César havia estendido em convite.
Em vez disso, ele avançou e se agarrou a César. Literalmente.
Mello enterrou o rosto na lapela do terno de César. O tecido de lã fria e luxuosa era um contraste gritante com a pele quente de César sob ele, e o cheiro – caro, familiar, e agora, desesperadamente necessário – envolveu Mello.
Mello estava acostumado a ser a âncora de César, o porto seguro lógico. Ele era o estrategista, o cérebro frio que se recusava a ceder ao pânico. Mas a noite tinha sido longa, e a tensão do confronto com Sasha, a visão da versão ‘Alpha’ de César, e a própria confissão de Mello o tinham esgotado. Mello precisava ser segurado, mesmo que apenas por um momento.
Ele se agarrou ao tecido do paletó, sentindo a dureza do corpo de César sob o forro. César era alto e musculoso, uma muralha.
César, que havia previsto a reação, não se moveu imediatamente para um abraço. Ele era lento com o toque, sempre cauteloso em sua resposta física. Ele estava processando o gesto. Para César, a iniciativa partindo de Mello era sempre um choque, algo que quebrava o padrão da dinâmica de anos.
Mello, sentindo a rigidez inicial de César, se pressionou ainda mais. “Mais quente, por favor,” Mello murmurou, o som abafado pelo tecido. Não era um pedido de calor físico, era um apelo por calor emocional, de conexão. Ele estava buscando o calor humano que o lembrasse que eles não eram apenas ativos e estratégicos, mas dois garotos que haviam se encontrado em um beco.
Mello sentiu os braços de César se moverem, a hesitação desaparecendo. O braço musculoso e forte de César não se envolveu em um abraço completo e reconfortante como Mello havia desejado, mas sim em um aperto firme na cintura de Mello, logo abaixo do roupão. Era uma possessão silenciosa, mas segura. O calor vinha do contato do corpo, mas o gesto era mais de contenção do que de conforto.
“O quarto,” César sussurrou em seu cabelo. O tom de comando habitual estava de volta, mas suavizado com a ternura. “Vamos sair daqui, Mello. Esta sala não é mais nossa.” O simbolismo era claro: a biblioteca era o domínio de Sasha, o lugar de transição de poder. O quarto era o domínio deles, o refúgio seguro.
César o guiou para fora da biblioteca, o braço firme em sua cintura. Mello não resistiu, contente por ser movido. Ele estava cansado de tomar decisões.
Eles subiram as escadas lentamente. A casa estava mergulhada em um silêncio opulento. Os corredores eram vastos e mal iluminados, mas Mello não precisava de luz para se orientar; ele havia memorizado cada curva, cada obstáculo no caminho para o seu santuário.
Ao chegarem ao quarto principal, Mello sentiu a ansiedade habitual de César aumentar. O quarto deles era seguro, mas representava o fim da jornada física e o início da conversa que eles precisavam ter.
César abriu a porta e Mello se soltou do abraço, mas apenas para entrar na sala. Ele viu o caos que ele havia deixado para trás: o roupão molhado no chão do banheiro, o pijama jogado, as botas na beirada da cama.
Mello sentou na beirada da cama. Ele precisava de chão firme. O turbilhão de emoções, a confissão, a estratégia. Precisava ser resolvido agora, antes que a lógica o engolisse novamente.
César fechou a porta atrás deles com um clique suave, uma barreira entre eles e o império que agora estava em suas mãos. Ele estava totalmente vestido, ainda no terno elegante, parecendo fora de lugar no quarto aconchegante. Ele parecia ter voltado a si, o estado de choque havia passado. O que restava era a determinação.
César ficou parado, olhando para Mello. Ele tirou o casaco e o jogou em uma cadeira, mas ainda estava com a camisa e as calças.
“Você está cansado,” César declarou o óbvio, aproximando-se da cama.
“E você parece que vai entrar em campo de batalha,” Mello rebateu. “Tire essa roupa. Está me dando ansiedade. Você está muito perto de ser seu pai.” Ele fez um gesto irritado em direção ao ombro de César, onde o terno se ajustava perfeitamente.
César permitiu um pequeno sorriso. “Eu me vesti assim para resistir à pressão dele,” César explicou, sentando-se ao lado de Mello. A cama afundou ligeiramente sob seu peso. “É uma armadura. Mas você o expulsou. Você sempre sabe a fórmula de escape.”
Mello sentiu o braço de César roçar o seu. A proximidade era demais. Mello virou-se para César, e viu a exaustão nos seus olhos. Sob as luzes indiretas do quarto luxuoso, a palidez do albinismo de César parecia ainda mais acentuada.
Mello esticou a mão e tocou a cicatriz de César, a linha tênue de pele ao lado de seu olho, um lembrete físico de que César era um sobrevivente, mas também uma vítima.
“Eu não vi você na biblioteca, César. Eu vi um eco de Sasha,” Mello disse, forçando a voz a manter a calma. Ele precisava que César entendesse a seriedade do que estava dizendo. “A frieza, a falta de hesitação, a forma como você trocava pessoas por ativos logísticos. Você absorveu o ‘Alpha’ dele tão rapidamente que por um momento, pensei que a transição já estava concluída, não em uma semana, mas agora.”
César virou ligeiramente a cabeça, permitindo que a mão de Mello acariciasse a área sensível.
“Eu estava fingindo,” César confessou, a voz quase um sussurro. “Você me ensinou tática, Mello. Sasha estava me testando, me pressionando. Se eu vacilasse, ele daria ao conselho a impressão de que eu era fraco. Eu tive que agir como se já fosse o chefe. Tive que usar a armadura dele. A linguagem, a postura.”
“Fingimento pode se tornar realidade,” Mello alertou, puxando a mão para si, o toque dele havia sido um pedido implícito para que César se livrasse da armadura. “Você é melhor que ele, César. Você tem a lógica, mas você também tem a humanidade que ele não tem. Você me resgatou do beco. Você se importa com a vida. Não deixe que o império o consuma.”
César pegou a mão de Mello, segurando-a. Seus dedos eram longos e fortes.
“Eu sei, Mello,” César disse. Ele não estava rejeitando a crítica. Estava aceitando-a. “Eu não quero ser ele. Não quero que você pense isso.”
“É por isso que eu disse o que disse,” Mello respondeu, olhando para as suas mãos entrelaçadas. Era um conforto silencioso. “Eu precisava de uma âncora. Algo para me lembrar que você ainda é meu… namorado. A versão que se importa com a segurança e com o chocolate, não com o porto de Odessa.”
César sorriu, um sorriso genuíno que iluminou seus olhos.
“Você é um estrategista até mesmo em seus momentos mais vulneráveis, Mello,” César disse. Ele apertou a mão de Mello. “Você se preocupa com o meu bem-estar, e me lembra do que é real. E é por isso que você é meu primeiro lugar, Mello. Você sempre foi.”
Mello sentiu um calor inundar seu peito, uma sensação que não tinha nada a ver com o calor do roupão. Ele havia passado a vida inteira em segundo lugar para Nate no orfanato: segundo em inteligência, segundo em aprovação. Ser o primeiro lugar de César, a mente essencial, o companheiro inestimável, era a vitória que ele mais prezava.
“Eu te amo, César,” Mello disse novamente, desta vez sem a necessidade de uma estratégia velada. Era a verdade, dita em voz baixa, no ambiente seguro deles. “E eu quero que você me prometa. Por favor. Não se torne a cópia de seu pai.”
César se virou para olhar Mello completamente, apoiando o joelho na cama, ignorando o quão amassada sua roupa ficaria. Seus olhos vasculharam o rosto de Mello, a cicatriz, a intensidade.
“Eu não serei,” César jurou, sua voz séria e solene. “É uma armadura, Mello. Apenas até tudo isso passar. Uma semana. Eu tenho que ser ele, ou mais frio que ele, para sobreviver. Mas assim que eu estiver firmemente no poder, assim que o conselho estiver sob controle e Sasha estiver longe na Patagônia… Eu voltarei a ser eu. O César que precisa de seu estrategista no seu lado, e do seu calor durante a noite.”
Ele era convincente. E Mello sabia que César estava dizendo a verdade. César precisava da humanidade que Mello representava, pois era o único lugar onde ele não precisava ser o monstro criado por Sasha.
Mello se inclinou, impulsionado pela promessa, e quebrou a pouca distância restante.
Seus lábios se encontraram.
Não era um beijo de paixão desenfreada, mas um encontro de alívio e aceitação. Era um beijo de profunda familiaridade. Mello sentiu a suavidade dos lábios de César, um contraste adorável com a frieza de sua atitude habitual e a armadura verbal que ele havia usado na biblioteca. O beijo era lento, um aceno de que eles estavam juntos novamente, no mesmo time, na mesma bolha de segurança.
César aprofundou o beijo ligeiramente, as pontas dos dedos de sua mão livre tateando a nuca de Mello, logo abaixo da linha do cabelo. O terno era apertado, e Mello podia sentir o ritmo acelerado do coração de César contra o corpo. A exaustão e a tensão estavam saindo em ondas, e o beijo era a válvula de escape.
Mello se afastou lentamente, a testa agora encostada na de César. Seus olhos estavam fechados, absorvendo o momento.
“Durma,” Mello ordenou gentilmente.
César não protestou. A armadura havia caído completamente.
César levantou-se e foi ao banheiro, movendo-se com a precisão de costume, mas com uma lentidão notável. Mello o observou. César tirou a camisa, revelando a pele branca e as cicatrizes que Mello conhecia tão intimamente. Mello podia ver a tatuagem sutil de corvo no ombro de César, a única indulgência estética que Mello havia permitido. César tinha uma forma muscular que era o resultado de treinamento intenso, e não de qualquer dieta ou genética, e Mello admirava o corpo forte, um testemunho de sua resiliência.
César voltou para o quarto vestindo apenas calças de pijama cinza, aquelas que Mello tinha insistido que ele comprasse porque eram de algodão orgânico e mantinham a temperatura ideal. César havia ignorado o preço exorbitante, pois se Mello estava preocupado com a qualidade do sono, ele seguiria as recomendações.
Mello já havia se deitado. Ele havia se aninhado sob as cobertas, puxando os lençóis de algodão egípcio para cima. O roupão de veludo branco havia sido jogado no chão, um símbolo da retirada do mundo exterior.
César desligou as luzes da mesinha de cabeceira. O quarto foi engolido pela escuridão total, exceto pelo brilho suave do mar Egeu que piscava além das janelas.
César se deitou na cama, afundando na maciez. Ele se virou imediatamente para Mello, e Mello não teve que estender a mão.
César se moveu em direção a Mello, e Mello avançou para encontrá-lo. Não havia palavras, apenas a necessidade mútua de contato.
César enrolou o braço em volta da cintura de Mello, puxando-o para que Mello se aninhasse firmemente contra seu peito. Mello se encaixou perfeitamente na concavidade do ombro de César. Mello sentiu o corpo de César totalmente relaxado. A respiração de César começou a se aprofundar, o ritmo estabelecendo o padrão de segurança que Mello havia aprendido a depender.
Mello podia sentir a batida constante do coração de César, o som familiar que o levava para longe da estratégica, longe de Sasha, longe da ameaça do conselho e de Nate.
Mello fechou os olhos. A segurança era física, e César era a personificação dela.
"Primeiro lugar," Mello murmurou, quase inconscientemente, o calor de César o embalando.
César pressionou um beijo no topo da cabeça de Mello.
"Para sempre," César respondeu, a voz carregada de sono e devoção.
Mello sabia que havia um mundo lá fora que estava prestes a explodir em caos, logística de portos, traição, e uma transição de poder de máfia. Mas, por enquanto, naquele abraço, ele estava seguro. Ele estava o primeiro lugar. Ele havia vencido a batalha da noite, e isso era o suficiente.
Mello finalmente sentiu.
—
*Onde ele está*...
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