Chapter 3: Desmoronando
Seus olhos vermelhos encontraram os azuis de Mello através do espaço do apartamento.
E então algo quebrou.
Mello simplesmente... desmoronou. Não havia outra palavra para descrever. Suas pernas cederam, e ele deslizou pela parede até estar sentado no chão, joelhos dobrados contra o peito. As mãos subiram para cobrir o rosto, dedos tremendo contra a pele pálida.
"Eu não sei," a voz saiu abafada atrás das mãos. "Eu não lembro direito. Do que aconteceu ontem."
César ficou completamente imóvel na poltrona. Não esperava isso. Esperava raiva talvez, medo definitivamente, ou até uma tentativa de fugir. Mas não essa rendição completa, esse desmoronamento silencioso.
O jornal escorregou dos dedos de César, caindo no chão com um som suave. Ele se levantou devagar, cada movimento deliberadamente lento para não assustar ainda mais o garoto. Mello não estava olhando de qualquer forma, ainda com o rosto escondido nas mãos.
A Glock estava ali, visível demais, ameaçadora demais. César a pegou cuidadosamente, viu Mello encolher mesmo sem estar olhando, como se pudesse sentir o movimento. Mas ao invés de apontá-la ou fazer qualquer coisa ameaçadora, César simplesmente a levou até a cozinha e a trancou numa gaveta.
Quando voltou, Mello tinha levantado a cabeça ligeiramente. Estava observando através dos dedos, olhos azuis molhados e confusos.
"Não vou te machucar," César disse. As primeiras palavras faladas em voz alta desde que o garoto acordou, e sua voz saiu mais rouca do que esperava. "Pode relaxar."
Mello soltou uma risada sem humor, ainda tremendo. "Relaxar. Certo. Porque acordar num lugar desconhecido, sem camisa, com um estranho armado é super relaxante."
Justo.
César se aproximou lentamente, atravessando a sala com passos medidos. Quando chegou perto de Mello, ao invés de ficar de pé sobre ele — o que seria intimidador pra caralho — ele simplesmente se sentou no chão também. Deixou um espaço respeitável entre eles, encostando na parede oposta de forma que ficaram de frente um para o outro.
"Você estava num beco," César começou. Manteve a voz baixa, calma. "Ontem de madrugada. Estava... não estava bem."
"Que surpresa," Mello murmurou, mas baixou as mãos do rosto. Ainda estava abraçando os joelhos contra o peito, postura defensiva e fechada. "E você estava lá porque...?"
"Estava passando."
"Passando. Num beco. De terno." Mello inclinou a cabeça, estudando César com aqueles olhos afiados que pareciam ver demais mesmo através da névoa da ressaca. "Isso é código pra 'nenhuma da sua conta'?"
"Sim."
Pelo menos ele era honesto sobre isso. Mello fez uma careta, mas não pressionou. "E então? Me encontrou lá e decidiu me sequestrar?"
"Você estava apagando," César explicou, ignorando a palavra 'sequestrar'. "Te trouxe pra cá. Te limpei. Te deixei dormir." Ele gesticulou vagamente para o quarto. "Só isso."
"Só isso," Mello repetiu, e havia algo perigoso no tom. "Você me limpou."
"Estava coberto de sujeira do beco."
"Sem camisa."
César sentiu algo quente subir pelo pescoço. Merda, ele estava corando? Sério? "A camisa estava suja também," ele disse, tentando manter a voz firme. "Não toquei na calça."
Mello o estudou por um longo momento. César podia ver o processamento acontecendo atrás daqueles olhos — pesando as palavras, procurando por mentiras, tentando decidir se acreditava ou não. Eventualmente algo na postura dele relaxou, só um pouco.
"Você falou comigo," Mello disse de repente. "No beco. Eu lembro disso. Estava tendo um surto e você... falou comigo."
"Falei."
"Por quê?"
A pergunta pegou César desprevenido. Por que tinha falado? Por que tinha ficado? Por que tinha feito qualquer merda disso? Ele tinha uma arma, tinha treinamento, tinha lugares para ir e pessoas para evitar. Não tinha tempo nem razão para ajudar um viciado aleatório num beco.
Mas tinha ficado mesmo assim.
"Pareceu certo," César disse finalmente, porque não tinha uma resposta melhor. "Você estava precisando de ajuda."
"Muita gente precisa de ajuda." Mello não estava acusando, apenas apontando um fato. "Aposto que você não ajuda todo mundo que encontra."
"Não."
"Então por que eu?"
César não sabia responder isso. Nem para Mello, nem para si mesmo. Tinha algo naquele garoto — a forma como ele tinha falado no beco, aquela vulnerabilidade crua e honesta, o jeito que tinha olhado para César sem medo ou julgamento. Apenas havia falado com ele como se fosse uma pessoa normal.
Ninguém fazia isso. Ninguém nunca fazia isso.
"Não sei," César admitiu. Era estranho admitir não saber algo, especialmente quando a vida toda tinha sido sobre saber tudo, planejar tudo, controlar tudo. "Apenas pareceu... importante."
Mello o observou por mais alguns segundos, então deixou a cabeça cair para trás contra a parede com um baque suave. Fechou os olhos. "Meu Deus, que ressaca."
O momento de tensão quebrou. César quase sorriu — quase, mas não completamente. "Provável."
"Quanto tempo eu fiquei apagado?"
"Algumas horas. É manhã agora."
"Ótimo." Mello passou uma mão pelo cabelo bagunçado, fazendo os fios ficarem ainda mais selvagens. "E agora? Qual o plano aqui, estranho misterioso?"
"César."
"O quê?"
"Meu nome," César esclareceu. "É César."
Mello abriu os olhos de novo, olhando para ele com algo que poderia ser diversão ou apenas mais confusão. "César. Sério?"
"Sim."
"Tipo... César César? Imperador de Roma César?"
"É um nome russo comum."
"Russo." Mello repetiu a palavra devagar, como se estivesse processando. "O sotaque faz sentido agora. Achei que tinha imaginado isso ontem."
Eles ficaram em silêncio por um momento. César podia ouvir o tráfego lá fora aumentando conforme a manhã progredia, o som de buzinas distantes e vozes passando na rua. Aqui dentro estava quente demais, ou talvez fosse só o fato de estar sentado no chão com um garoto meio nu olhando pra ele.
Então o estômago de Mello fez um barulho alto. Alto o suficiente que ambos ouviram claramente no silêncio do apartamento.
Mello congelou. Olhou para baixo, para o próprio estômago como se tivesse traído ele. Então de volta para César.
"Quando foi a última vez que comeu?" César perguntou, já sabendo que a resposta não seria boa.
Mello franziu a testa, pensando. "Eu... não sei. Ontem? Anteontem?" Ele balançou a cabeça. "Não lembro."
Dias então. Provavelmente mais do que ele estava admitindo. Explicava por que estava tão magro, por que as costelas se destacavam tanto.
César se levantou, ignorando a dor familiar nas próprias costelas. "Vou fazer café da manhã."
"Você não precisa—"
"Você precisa comer." Não era um pedido. César já estava se movendo em direção à cozinha. "Ovo tá bom?"
Houve uma pausa. Então, quieto: "Sim."
A cozinha era pequena mas funcional. César pegou ovos da geladeira, pão que tinha comprado alguns dias atrás, manteiga. Seus movimentos eram eficientes, praticados. Tinha aprendido a cozinar cedo — quando você não podia confiar que a comida não estava envenenada, aprender a fazer a própria era uma questão de sobrevivência.
Ele podia sentir Mello observando da sala. Não virou para checar, mas sabia. Podia sentir o peso daquele olhar azul estudando cada movimento.
A frigideira aqueceu. César quebrou três ovos — dois para Mello, um para si — e começou a fritá-los. O cheiro de comida encheu o apartamento, e ouviu o estômago de Mello reclamar de novo mesmo da cozinha.
"Tem banheiro se quiser lavar o rosto," César chamou, mantendo os olhos na frigideira. "Primeira porta à direita."
Mais silêncio. Então o som de Mello se levantando, passos incertos atravessando para o banheiro. A porta fechou com um clique suave.
César fritou os ovos, torrou o pão, arrumou tudo em dois pratos. Simples, mas era comida. Mais do que Mello tinha tido recentemente, aparentemente.
Estava colocando os pratos na mesa quando ouviu a torneira fechar no banheiro. Mais um minuto, então Mello saiu. O cabelo ainda estava bagunçado mas pelo menos o rosto estava mais limpo agora, sem as marcas de sono e confusão.
Ele parou na entrada da sala, olhando para a mesa com os pratos. Então para César. De volta para a mesa.
"Senta," César disse, já se sentando numa das cadeiras. "Come antes que esfrie."
Mello hesitou — claro que hesitou, o garoto não era idiota — mas eventualmente se aproximou e sentou na outra cadeira. Olhou para o prato como se não tivesse certeza se era real.
"Não tem veneno," César disse, já cortando o próprio ovo. Comeu um pedaço deliberadamente, provando. "Vê? Seguro."
"Isso é exatamente o que alguém com veneno diria," Mello apontou, mas pegou o garfo mesmo assim. Cortou um pedaço pequeno de ovo, levou à boca.
César viu o momento em que o sabor bateu. A forma como os olhos de Mello se fecharam, como ele mastigou devagar, saboreando. Como se fosse a melhor coisa que tinha provado em semanas.
Provavelmente era.
Eles comeram em silêncio. Mello devorou tudo no prato em minutos, limpando até a última migalha de pão. César comeu mais devagar, observando discretamente. O garoto estava faminto, isso era óbvio. Mas estava tentando não demonstrar, mantendo algum controle mesmo enquanto engolia a comida.
Orgulho. Até morrendo de fome, ele tinha orgulho demais para mostrar fraqueza completamente.
César entendia isso.
"Tem mais se quiser," ele ofereceu quando Mello terminou.
"Não." Mello colocou o garfo no prato vazio. "Mas obrigado."
Educado também. Interessante. Todas essas pequenas peças que não se encaixavam com a imagem de viciado em beco que César tinha inicialmente.
"Preciso usar o banheiro," César disse, se levantando. "Você pode... ficar aí. Ou explorar. Não me importo."
Ele viu a surpresa passar pelo rosto de Mello. Confiança não era algo que o garoto esperava, aparentemente. Mas César não disse mais nada, apenas foi para o banheiro e fechou a porta.
Deu descarga mesmo sem precisar, só para fazer barulho. Lavou as mãos devagar, dando tempo. Sabia exatamente o que Mello ia fazer — o garoto era inteligente, curioso, e acabou de acordar num apartamento estranho com um estranho armado. Claro que ia investigar.
César queria que ele investigasse. Queria ver o que o garoto descobriria, como reagiria.
Do outro lado da porta, ele ouviu os sons sutis de movimento. Passos cuidadosos, o rangido suave de uma gaveta sendo aberta. Mello estava procurando, tentando descobrir quem César era.
Boa sorte com isso.
César esperou mais alguns minutos, dando tempo suficiente. Então abriu a porta e voltou para a sala.
Mello estava de volta à mesa, sentado na mesma posição de antes. Mas seus olhos estavam diferentes agora — mais focados, mais alertas. Tinha encontrado algo.
"Sentindo melhor?" César perguntou casualmente, voltando para sua cadeira.
"Sim." Mello tamborilou os dedos na mesa, um ritmo nervoso. "O apartamento é legal. Pequeno mas... funcional."
"Serve seu propósito."
"Aposto que sim." Os dedos continuaram tamborilando. "Deve ser útil ter um lugar assim. Quieto. Privado. Onde ninguém sabe que você está."
Ah. Então ele tinha encontrado alguma coisa que deu essa impressão. César manteve a expressão neutra. "É conveniente."
"Especialmente quando você tem vários nomes diferentes." As palavras saíram casuais demais, testando. "Deve ser confuso lembrar qual usar quando."
Lá estava. César tinha documentos falsos guardados no apartamento — identidades de backup, passaportes, carteiras de motorista. Não deixava eles completamente escondidos porque precisava de acesso rápido em emergência. E Mello tinha encontrado.
O garoto era rápido. Muito rápido.
"Deve ser mesmo," César concordou, não confirmando nem negando nada.
Mello parou de tamborilar. Inclinou a cabeça, estudando César com aqueles olhos azuis penetrantes. "Você não vai negar?"
"Por quê? Você já viu."
"A maioria das pessoas negaria."
"Não sou a maioria das pessoas."
Uma risada curta escapou de Mello. Não tinha humor real, mas tinha algo — reconhecimento talvez. "Claramente." Ele se inclinou para frente, cotovelos na mesa. "Então deixa eu fazer a pergunta óbvia aqui."
"Vai em frente."
"Quem é você realmente?" Mello manteve os olhos fixos nos de César, sem piscar. "E não me dê essa merda de 'só César'. Você tem armas, identidades falsas, um apartamento seguro que ninguém conhece. Não é exatamente perfil de cidadão comum."
César tinha que admirar a coragem. O garoto estava literalmente à mercê dele — sem camisa, sem ter pra onde ir, provavelmente ainda um pouco fodido das drogas — e estava fazendo essas perguntas diretamente. Sem rodeios, sem medo.
Ou ele não tinha instinto de sobrevivência, ou tinha instinto demais e sabia que César não ia machucá-lo.
"Tenho negócios," César disse cuidadosamente. "Negócios que requerem... discrição."
"Discrição." Mello repetiu a palavra como se estivesse provando o gosto. "Isso é código pra ilegal?"
"Você realmente quer saber?"
A pergunta fez Mello pausar. César viu o processamento acontecendo — pesando os prós e contras de conhecer a verdade. Conhecimento era perigoso. Quanto mais você sabia, mais envolvido ficava.
Mas Mello não era do tipo que recuava de perigo.
"Sim," ele disse finalmente. "Quero saber."
"Por quê?"
"Porque você me trouxe pra cá. Porque me limpou, me alimentou, guardou a arma quando viu que eu estava com medo." Mello gesticulou vagamente. "Porque você é uma contradição ambulante e eu odeio não entender as coisas."
Honestidade crua de novo. Esse garoto não sabia mentir, ou simplesmente não se importava em tentar.
César considerou quanto contar. Não podia falar tudo — sobre a família, a máfia, os assassinatos. Isso seria estupidez. Mas algo tinha que dar, ou Mello nunca confiaria nele.
E por alguma razão que César não entendia completamente, ele queria essa confiança.
"Minha família tem... influência," ele começou devagar. "Negócios em vários países. Muitos recursos, muitos inimigos." Não era mentira, tecnicamente. "Às vezes pessoas tentam usar isso contra mim."
"Daí as tentativas de assassinato," Mello disse, não como pergunta mas como confirmação.
César piscou. "Como você—"
"As cicatrizes." Mello gesticulou para o torso de César, coberto pela camiseta mas obviamente mapeado na memória dele. "Vi quando você estava sentado. A forma como você se move também, favorecendo o lado esquerdo. Costelas quebradas ou rachadas, chutaria." Os olhos azuis eram clínicos agora, analíticos. "E você tem aquela coisa de sempre checar a porta, as janelas. Hipervigilância. Comportamento de alguém que está sempre esperando ataque."
Caralho. O garoto era muito mais observador do que César tinha percebido.
"Você devia ser detetive," César disse, meio impressionado, meio perturbado.
"Eu queria ser." Algo amargo passou pelo rosto de Mello. "Mas segundo lugar nunca consegue nada, não é?"
Aquela frase de novo. A mesma do beco, sobre nunca ser bom o suficiente. Tinha história ali, dor antiga que não tinha cicatrizado.
Mas antes que César pudesse perguntar sobre isso, Mello se levantou. "Bom, foi educativo. Mas provavelmente deveria ir embora antes de me envolver mais em seja lá qual merda você está metido."
"Ir pra onde?"
A pergunta fez Mello pausar a meio caminho de se levantar. Ele ficou ali, meio em pé, meio sentado, como se não tivesse considerado isso.
"Eu... tenho lugares."
"Lugares que não são becos?"
Mello fechou a cara. "Isso foi desnecessário."
"Mas verdade." César se levantou também, movendo ao redor da mesa. Não se aproximou muito, apenas o suficiente para manter contato visual. "Você não tem pra onde ir. Se tivesse, não estaria num beco usando drogas."
"Você não sabe nada sobre mim."
"Sei que você está sozinho." As palavras saíram mais suaves do que César pretendia. "Sei que você estava com dor suficiente pra buscar alívio de qualquer forma. Sei que você é inteligente pra caralho mas está se sabotando."
Mello ficou completamente imóvel. "Para."
"Sei que você acha que é segundo lugar em alguma coisa, e isso tá te matando por dentro—"
"Eu disse pra parar." A voz de Mello estava tensa agora, perigosa. "Você não me conhece. Uma conversa num beco não te dá direito de—"
"Fica."
A palavra saiu simples, direta. Mello congelou.
"Fica aqui," César repetiu. "Pelo menos até você descobrir o próximo passo. Tenho espaço, tenho comida. Não precisa ser... nada. Apenas um lugar seguro por enquanto."
"Por que você continua fazendo isso?" Mello perguntou, e havia frustração real na voz agora. "Por que se importa?"
César não tinha resposta boa para isso. Não tinha resposta lógica, nenhuma razão que fizesse sentido quando você colocava no papel. Apenas sabia que a ideia de Mello saindo daqui, voltando para as ruas, voltando para as drogas — fazia algo apertar no seu peito de forma dolorosa.
"Porque ninguém nunca ficou por mim," ele disse finalmente, honestidade crua combinando com a de Mello. "E talvez eu queira ser diferente disso."
Silêncio caiu entre eles. Pesado, carregado de coisas não ditas. Mello estava olhando para ele com uma expressão que César não conseguia ler — surpresa, confusão, talvez algo mais suave embaixo.
Então Mello se sentou de volta na cadeira. Não disse nada, apenas sentou.
César tomou isso como resposta.
Eles ficaram ali por um longo momento, nenhum dos dois falando. O apartamento estava quieto exceto pelos sons distantes da cidade lá fora. Luz da manhã entrava pelas janelas, iluminando as cicatrizes no rosto de Mello, fazendo o cabelo loiro parecer quase branco em alguns ângulos.
Eventualmente Mello quebrou o silêncio.
"Então," ele disse, voz casual demais. "Qual seu nome verdadeiro?"
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