Chapter 2: O Apartamento Seguro César não sabia quanto tempo ficou ali parado, olhando para o garoto loiro desacordado no chão do beco. Minutos provavelmente, talvez mais. O tempo tinha uma forma estranha de se distorcer quando você estava tentando não pensar sobre o fato de que pessoas tinham acabado de tentar matá-lo. De novo. A respiração de Mello era profunda agora, regular. Parecia pacífico de um jeito que contradzia completamente o estado em que ele estava antes — todo aquele desespero, aquelas lágrimas, aquela confissão quebrada sobre nunca ser bom o suficiente. César não entendia completamente sobre o que o garoto estava falando, mas reconhecia a dor quando via. Era do tipo que você carregava no peito, pesada e constante. Ele precisava ir embora. Cada segundo parado ali era perigoso, estúpido até. Os homens do pai podiam aparecer a qualquer momento procurando por ele, ou pior, aqueles que tinham tentado matá-lo podiam ter seguido seu rastro. Mas seus pés pareciam grudados no chão sujo do beco. Deixá-lo aqui seria... errado. A palavra surgiu na mente de César sem aviso, e ele franziu a testa. Quando tinha começado a se importar com certo e errado? No seu mundo, essas coisas eram luxos que você não podia dar ao acaso de ter. Você sobrevivia, ponto final. Mas esse garoto tinha falado com ele. Não com medo, não com ganância ou segundas intenções. Tinha apenas... falado. Feito piadas estranhas sobre overdose e lixeiras e olhado para César como se fosse apenas uma pessoa normal e não o herdeiro de uma máfia que matava gente antes do café da manhã. Merda. César passou uma mão pelo cabelo branco, sentindo a textura áspera de sangue seco que tinha grudado ali em algum ponto durante a noite. Ele estava uma bagunça completa — terno manchado, provavelmente com algumas costelas quebradas pelo jeito que doía respirar fundo, e agora aparentemente decidindo adotar um viciado aleatório que encontrou num beco. Que ótimas decisões de vida, César. Mas mesmo enquanto pensava isso, ele já estava se movendo. Aproximou-se de Mello com cuidado, cada passo medido e silencioso. O garoto não se mexeu, completamente apagado. César se abaixou, ignorando a dor aguda que atravessou suas costelas com o movimento. De perto, Mello parecia ainda mais jovem. A cicatriz de queimadura no lado esquerdo do rosto era extensa, a pele danificada criando um padrão irregular que subia desde a mandíbula até a têmpora. Tinha que ter doído pra caralho quando aconteceu. E recente também, pela aparência — talvez alguns anos no máximo. O cabelo loiro estava grudado na testa suada, alguns fios caindo sobre os olhos fechados. César estendeu a mão, hesitou por uma fração de segundo, depois afastou os fios do rosto de Mello. A pele estava quente sob seus dedos. Ele precisava tirá-lo dali. César deslizou um braço sob os joelhos de Mello e outro atrás das costas, então levantou. O garoto era leve — pesava menos do que deveria para alguém do seu tamanho. Magro demais, provavelmente não estava comendo direito. Mais um sinal de que as coisas não estavam indo bem para ele. Mello se acomodou contra o peito de César sem acordar, a cabeça caindo contra seu ombro. A respiração quente passou pelo pescoço de César, e algo estranho aconteceu no seu peito. Uma sensação de aperto que não tinha nada a ver com costelas quebradas. Foco, idiota. César ajustou Mello nos braços e saiu do beco com passos rápidos mas cuidadosos. A rua estava vazia nessa hora da madrugada, apenas algumas luzes distantes de postes e janelas iluminando o caminho. Ele manteve-se nas sombras por instinto, olhos vasculhando cada esquina, cada carro estacionado, procurando por ameaças. Seu apartamento seguro ficava a três quarteirões dali. Ele tinha vários espalhados pela cidade, lugares que ninguém da família sabia que existiam. Dinheiro que ele tinha desviado cuidadosamente ao longo dos anos, identidades falsas, rotas de fuga. Você não sobrevivia sendo herdeiro de uma máfia sem ter planos de contingência. O prédio era antigo mas bem mantido, o tipo de lugar que passava completamente despercebido. Sem porteiro, sem câmeras — exatamente como César planejara. Ele subiu as escadas até o terceiro andar, os músculos dos braços nem tremendo com o peso de Mello. Todo aquele treinamento brutal que tinha começado quando ele tinha oito anos servia pra alguma coisa afinal. A porta do apartamento tinha três fechaduras. César conseguiu abrir todas usando apenas uma mão, mantendo Mello seguro com a outra. Entrou rápido, fechou a porta atrás de si e trancou tudo de novo antes de finalmente relaxar um pouco. Seguro. Pelo menos por enquanto. O apartamento era pequeno mas funcional. Sala de estar com uma poltrona de couro desgastada, uma mesa, estantes com livros que César nunca tinha tempo de ler. Cozinha minúscula à esquerda, banheiro e quarto à direita. Tudo limpo, organizado, impessoal. Como um hotel, não uma casa. César levou Mello direto para o quarto. Não tinha muito ali — apenas uma cama de casal com lençóis brancos simples, um criado-mudo, um guarda-roupa. Ele deitou Mello cuidadosamente sobre a cama, ajeitando a cabeça loira no travesseiro. O garoto se mexeu um pouco, rosto se contorcendo como se estivesse tendo um sonho ruim, mas não acordou. César ficou ali parado por um momento, olhando para ele. Mesmo dormindo, havia uma tensão no rosto de Mello — mandíbula apertada, testa levemente franzida. Como se nem no sono ele conseguisse relaxar completamente. Então César notou o resto. As roupas de couro estavam sujas, cobertas com sujeira do beco e Deus sabe mais o quê. A pele exposta — pescoço, mãos, o pequeno pedaço de pele visível onde a jaqueta tinha se aberto — tinha manchas escuras de sujeira também. Ele não podia deixá-lo assim. A ideia de tocar o garoto novamente, de despir suas roupas e limpá-lo, fez algo estranho acontecer no estômago de César. Nervosismo talvez, ou algo parecido. Ridículo. Ele tinha visto e feito coisas muito piores. Isso era apenas... prático. César foi até o banheiro e encheu uma bacia com água morna. Pegou algumas toalhas limpas, sabonete neutro. Voltou para o quarto e colocou tudo no criado-mudo ao lado da cama. Respirou fundo — imediatamente se arrependeu quando a dor nas costelas lembrou que respirar fundo era uma péssima ideia — e começou. Primeiro a jaqueta de couro. César desabotoou cuidadosamente, depois deslizou o material pelos braços finos de Mello. A camisa por baixo era preta também, manga longa, e estava grudada na pele em alguns lugares por causa do suor. César hesitou, depois decidiu que a camisa também tinha que sair. Levantou Mello gentilmente para sentar, apoiando as costas do garoto contra seu peito enquanto puxava a camisa pela cabeça. Mello murmurou algo ininteligível mas não acordou. Quando César o deitou de novo, ele podia ver as costelas se destacando sob a pele pálida. Definitivamente não estava comendo direito. As botas foram mais fáceis. César as desamarrou e puxou, colocando-as cuidadosamente no chão ao lado da cama. As meias vieram junto, revelando pés descalços que estavam surpreendentemente limpos comparado com o resto. A calça de couro justa era... complicada. César olhou para ela por um longo momento, tentando descobrir a melhor forma de fazer isso sem ser completamente invasivo. Eventualmente decidiu deixá-la. A calça não estava tão suja quanto o resto, e tirar isso parecia cruzar uma linha que ele não estava confortável cruzando. Então ele pegou uma toalha, molhou na água morna e começou a limpar. O rosto primeiro. César passou a toalha úmida gentilmente pela testa de Mello, removendo o suor e a sujeira acumulada. Os olhos fechados se contraíram um pouco quando a água tocou as pálpebras, mas ele não acordou. César limpou as bochechas, o nariz, ao redor da boca. Quando chegou na cicatriz, ele foi ainda mais cuidadoso. A pele danificada parecia sensível, e a última coisa que ele queria era machucar o garoto. Pescoço, ombros, braços. César trabalhou meticulosamente, trocando a água quando ficava muito suja, usando toalhas limpas. As mãos de Mello eram pequenas comparadas com as suas, dedos longos e elegantes apesar da sujeira sob as unhas. César limpou cada dedo cuidadosamente, removendo a sujeira acumulada. O peito magro, as costelas salientes. César tentou não pensar muito sobre o fato de que estava tocando a pele nua de um completo estranho. Apenas foque em limpar, não seja estranho sobre isso. Quando finalmente terminou, Mello estava consideravelmente mais limpo. Não perfeito — ele precisaria de um banho de verdade eventualmente — mas melhor. César cobriu o corpo nu com os lençóis brancos, puxando o tecido até o peito de Mello. Então simplesmente ficou ali parado, olhando. O que ele estava fazendo? Sério, que porra estava fazendo? Tinha gente tentando matá-lo, sua família provavelmente estava procurando por ele, e ele estava aqui brincando de enfermeiro para um viciado aleatório que conheceu há algumas horas. Mas quando olhava para Mello dormindo ali, algo naquele aperto no peito voltava. O garoto parecia... pacífico agora. Seguro. E César tinha feito isso, tinha dado isso pra ele. Ninguém nunca tinha feito nada assim por César. Ninguém nunca tinha se importado se ele estava limpo ou sujo, ferido ou inteiro, vivo ou morto. Mas aqui estava ele, fazendo exatamente isso por alguém que nem sabia seu nome. Patético. Você está ficando mole. César saiu do quarto, fechando a porta gentilmente atrás de si. Precisava checar os próprios ferimentos, trocar de roupa, pensar sobre o que fazer agora. Mas primeiro... Ele foi até a cozinha e pegou um copo de água. Bebeu tudo de uma vez, a garganta seca queimando. Quando foi a última vez que tinha comido ou bebido alguma coisa? Horas provavelmente. O corpo estava reclamando agora que a adrenalina estava começando a passar. César olhou para o próprio reflexo na janela da cozinha. Sangue seco no cabelo branco, manchas escuras no terno caro que já estava arruinado de qualquer jeito. O rosto estava pálido até para os padrões dele, olhos vermelhos cansados e cercados de olheiras escuras. Você parece um cadáver. Ele precisava de um banho também. César foi até o banheiro, tirou o terno manchado de sangue e o jogou num canto. Provavelmente ia ter que queimar essa merda. A camisa branca por baixo estava manchada também, revelando os vários curativos improvisados que ele tinha feito mais cedo cobrindo ferimentos de faca e um tiro de raspão. O banho foi rápido, água quente demais queimando a pele enquanto ele lavava o sangue. César observou a água ficando rosa no ralo e tentou não pensar sobre quantas vezes já tinha feito exatamente isso. Lavar o sangue, limpar os ferimentos, fingir que estava tudo bem. Quando saiu, ele se olhou no espelho embaçado. As cicatrizes eram mais visíveis molhadas — linhas brancas e rosadas cruzando o torso, as costas, os braços. Algumas velhas, algumas recentes. Um mapa de todas as vezes que alguém tinha tentado matá-lo e falhado. Por pouco. César se secou e colocou roupas limpas. Calça de moletom preta, camiseta branca simples. Nada formal, nada que chamasse atenção. Ele checou os ferimentos, trocou os curativos que precisavam, engoliu alguns analgésicos a seco. Então voltou para a sala de estar. A poltrona de couro estava posicionada de forma que ele podia ver tanto a porta de entrada quanto a porta do quarto. Perfeito. César se sentou, sentindo os músculos doloridos reclamarem do movimento. A mesinha ao lado tinha uma pilha de jornais que ele não tinha lido ainda. Pegou o de cima — três dias atrás, notícias sobre política e economia que não significavam nada para ele. Mas precisava fazer alguma coisa com as mãos, manter a mente ocupada. Quanto tempo até o garoto acordar? Horas provavelmente, considerando o estado em que ele estava. César tinha visto viciados antes — o suficiente para saber que a recuperação não era rápida nem bonita. Mello acordaria enjoado, confuso, provavelmente com uma ressaca do inferno. E então o quê? César não tinha resposta para isso. Não tinha pensado tão longe. Só sabia que tinha prometido ajudar, e no mundo dele, promessas significavam alguma coisa. Mesmo promessas feitas para estranhos em becos escuros. O apartamento ficou quieto. Apenas o som distante de tráfego lá fora, o tique-taque de um relógio na parede da cozinha. César folheou o jornal sem realmente ler, olhos checando a porta do quarto a cada poucos segundos. Ele pegou a Glock que sempre carregava e a colocou na lateral da poltrona, parcialmente escondida mas fácil de alcançar. Apenas no caso. Sempre apenas no caso. As horas passaram devagar. César leu três jornais, checou o telefone descartável que tinha comprado há algumas semanas (sem mensagens, sem ligações, bom), comeu uma maçã porque seu estômago estava reclamando. A luz começou a mudar lá fora. Madrugada virando manhã cedo, o céu clareando gradualmente de preto para azul escuro para aquele cinza pálido de antes do amanhecer. E então ouviu um som vindo do quarto. Movimento. O rangido de molas da cama, um gemido baixo e áspero. César largou o jornal imediatamente, todos os músculos ficando tensos. Ele não se moveu da poltrona, apenas ficou ali sentado, esperando. Ouviu mais movimento — alguém se sentando, respiração pesada. Então silêncio. Um silêncio longo e tenso que se esticou por minutos. César manteve os olhos no jornal, fingindo estar absorto nas palavras que não estava realmente lendo. Ele sabia que o garoto estava acordado agora, sabia que provavelmente estava confuso e assustado e tentando entender o que estava acontecendo. Deixa ele processar. Não o assuste ainda mais. Mais alguns minutos passaram. César virou uma página do jornal, o papel fazendo um som alto no silêncio do apartamento. Não foi por acidente — queria que Mello soubesse que ele estava ali, que estava acordado, mas que não era uma ameaça. Podia sentir os olhos em si agora. O garoto estava olhando através da porta entreaberta do quarto, estudando-o. César manteve a postura relaxada, recostado na poltrona como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Mesmo que cada instinto estivesse gritando para ele olhar de volta, checar a ameaça potencial, avaliar a situação. Anos de treinamento não desapareciam só porque você estava tentando não assustar um viciado confuso. O silêncio continuou. César podia praticamente sentir a confusão radiando do quarto. Ele estava esperando Mello processar — acordar num lugar estranho, perceber que estava limpo e sem camisa, ver um estranho sentado na outra sala lendo jornal casualmente como se fosse a coisa mais normal do mundo. Deve estar surtando por dentro. César virou outra página. Leu uma manchete sobre mercado de ações. Completamente irrelevante, mas mantinha suas mãos ocupadas. Então ouviu — muito suave, quase imperceptível — o som de lençóis sendo empurrados. Mais movimento. Alguém se levantando devagar, provavelmente tonto e instável. Mello estava se movendo pelo quarto agora, César podia rastrear o som. Passos lentos e cuidadosos, uma pausa (provavelmente olhando suas roupas no chão?), mais passos. A porta do quarto se abriu mais. César manteve os olhos no jornal, mas toda sua atenção estava focada na figura que ele podia ver pela visão periférica. Mello estava parado na entrada do quarto, uma mão apoiada no batente como se precisasse do suporte. Ainda sem camisa, só de calça de couro, cabelo loiro completamente bagunçado apontando em todas as direções. E estava olhando diretamente para César. Os olhos azuis estavam mais claros agora, pupilas ainda um pouco dilatadas mas não tanto quanto antes. Tinha confusão ali, sim, mas também algo mais afiado. Inteligência trabalhando através da névoa química, tentando juntar as peças. César podia sentir o peso daquele olhar. Virou mais uma página do jornal, fazendo o gesto parecer casual mesmo que cada nervo estivesse alerta. Deixa ele vir até você. Não force nada. Mello não se moveu por um longo momento. Apenas ficou ali parado, apoiado no batente, estudando César com aqueles olhos azuis intensos. Tentando entender. Processar. Decidir se estava em perigo ou não. Então seus olhos desceram, vasculhando a figura de César sentado na poltrona. E pararam. César sabia exatamente o que ele tinha visto. A Glock na lateral da poltrona, parcialmente escondida mas visível se você estava procurando. E Mello definitivamente estava procurando. O corpo do garoto ficou tenso. César viu o momento exato em que o medo bateu — aquele enrijecimento dos ombros, o jeito que os dedos se apertaram no batente da porta. Merda. Mas ele ainda não disse nada. Nenhum dos dois disse. Apenas ficaram ali naquele silêncio tenso e pesado, Mello observando a arma, César fingindo ler o jornal enquanto esperava para ver o que ia acontecer. A luz da manhã começava a entrar pelas janelas, iluminando o apartamento com aquele brilho pálido e frio. César podia ver Mello mais claramente agora — a forma como ele estava tremendo levemente, não de frio mas provavelmente de abstinência começando. O jeito que seus olhos se moviam, checando cada detalhe do apartamento, procurando por saídas, por ameaças. Inteligente. Mesmo fodido e confuso, ele estava pensando. César virou mais uma página. O som pareceu quebrar algo no ar tenso, e finalmente — finalmente — ele levantou os olhos do jornal. Seus olhos vermelhos encontraram os azuis de Mello através do espaço do apartamento.

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