Chapter 1: O Beco
O mundo estava torto.
Mello conseguia sentir isso na forma como o chão se movia sob seus pés, como as paredes respiravam, como tudo ao seu redor pulsava com uma vida própria que não deveria existir. Ele cambaleava pelo beco escuro, seus movimentos descoordenados e pesados, como se seus membros não pertencessem mais a ele. Uma das mãos deslizou pela parede úmida, dedos arrastando-se por tijolos frios e irregulares enquanto ele tentava se manter de pé.
Não cair. Só preciso não cair.
Mas suas pernas tinham outras ideias. Elas tremiam, joelhos cedendo levemente a cada passo cambaleante. O couro de sua jaqueta roçava contra a parede com um som áspero que ecoava no espaço apertado do beco. Mello piscou lentamente, tentando focar em alguma coisa, qualquer coisa, mas tudo se misturava em manchas de sombras e luzes distorcidas.
Suas pupilas estavam dilatadas a ponto de quase engolir completamente o azul intenso de seus olhos. Ele sabia disso sem precisar olhar no espelho. Conhecia os sinais. Conhecia essa sensação muito bem, por mais que odiasse admitir.
A parede estava fria contra suas costas quando ele finalmente encostou nela, jogando todo seu peso contra os tijolos úmidos. Água. Tinha água escorrendo por ali, ou talvez fosse outra coisa. Ele não queria pensar muito sobre isso. O chão do beco estava cheio de poças escuras que refletiam pedaços do céu noturno, manchas de luz artificial de postes distantes criando padrões estranhos que dançavam na sua visão turva.
Mello deixou sua cabeça cair para trás, batendo levemente contra a parede. A dor era distante, abafada, como se estivesse acontecendo com outra pessoa. Seu cabelo loiro bagunçado grudava na testa suada, alguns fios caindo sobre seus olhos. Ele não se incomodou em afastá-los.
Quanto tempo ele estava ali? Minutos? Horas? O tempo tinha perdido completamente o significado. Podia ter sido uma eternidade ou apenas alguns segundos desde que ele tinha entrado naquele beco tentando fugir de... o quê? Ele nem lembrava mais.
A cicatriz no lado esquerdo do seu rosto latejava. Sempre latejava quando ele estava assim, como se a pele queimada tivesse memória própria e quisesse lembrá-lo de tudo que ele tentava esquecer. Segundo lugar. Sempre segundo lugar.
Ele fechou os olhos por um momento, respirando fundo. O ar do beco era pesado, carregado com o cheiro de lixo e umidade e algo mais que ele não conseguia identificar. Seu estômago revirou, mas ele engoliu em seco, forçando a náusea para baixo.
Não aqui. Não agora.
Quando abriu os olhos novamente, o mundo continuava girando. As sombras se moviam nas bordas da sua visão, criando formas que não estavam realmente ali. Ele sabia que não estavam. Mas mesmo assim...
Foi então que viu a figura.
No começo, Mello pensou que fosse outra alucinação. Mais uma das sombras ganhando forma, mais um truque da sua mente bagunçada. Mas essa figura permaneceu, sólida e real, parada na entrada do beco.
Alta. Muito alta.
A pessoa era pálida — não, pálida não era a palavra certa. Era como se toda a cor tivesse sido drenada dela, deixando apenas uma silhueta branca que contrastava violentamente com a escuridão ao redor. Mello piscou várias vezes, tentando focar, tentando fazer sentido do que estava vendo.
Um terno. A figura usava um terno.
Que diabos?
Mello forçou seus olhos a se concentrarem, lutando contra a névoa química que nublava seus pensamentos. Sim, definitivamente um terno. Escuro, impecável, o tipo de roupa que você usaria para um jantar importante ou... sei lá, um funeral talvez. As linhas eram nítidas mesmo na pouca luz, o corte perfeito mesmo à distância.
Quem usa terno em um beco?
A pergunta flutuou pela mente de Mello, meio divertida, meio confusa. Ele tentou rir, mas o som saiu estrangulado, mais parecido com um engasgo do que qualquer outra coisa.
A figura ainda não tinha se movido. Ficou ali parada, um pilar branco e imóvel, e Mello se perguntou vagamente se ela era real mesmo. Talvez fosse só mais uma criação da sua imaginação superativa e quimicamente alterada. Talvez se ele piscasse ela desapareceria como todas as outras coisas que ele tinha certeza de ter visto nos últimos... quanto tempo mesmo?
Mas ele piscou, e a figura permaneceu.
Então Mello levantou o olhar completamente, inclinando a cabeça para trás contra a parede, e seus olhos azuis dilatados se fixaram na pessoa à entrada do beco. Por um longo momento, nenhum dos dois se moveu. O silêncio era tenso, pesado, carregado com algo que Mello não conseguia nomear.
Ele estudou a figura com a intensidade que conseguia reunir no estado em que estava. Alto — já tinha estabelecido isso. Masculino, provavelmente. Cabelo branco? Ou seria loiro muito claro? Difícil dizer na escuridão. E aquele terno ridiculamente formal...
Uma risada borbulhou no peito de Mello, amarga e rouca. Que situação mais absurda. Ele, um gênio fodido e drogado cambaleando em um beco imundo, sendo observado por alguém que parecia ter saído de uma revista de moda para homens ricos.
Com um esforço considerável, Mello levantou uma das mãos. O movimento foi lento, preguiçoso, seus dedos se curvando em um aceno desajeitado. Vem cá. Ele não disse as palavras em voz alta, mas o gesto era claro o suficiente. Aproxima.
Por que ele fez isso? Ele não tinha ideia. Talvez fosse a solidão. Talvez fosse a necessidade de confirmar que aquela pessoa era real e não mais um produto da sua imaginação distorcida. Talvez ele só não quisesse ficar sozinho naquele momento.
A figura hesitou.
Mello viu o movimento, a forma como a cabeça se virou levemente, olhando para trás como se verificando algo. Como se tivesse medo de ser seguido. O gesto era tenso, rápido, cheio de uma cautela que Mello reconheceu mesmo através da névoa nos seus pensamentos.
Paranoia. Essa pessoa estava com medo de algo.
Bem-vindo ao clube, cara.
Então, depois do que pareceu uma eternidade mas provavelmente foram apenas alguns segundos, a figura começou a se mover. Os passos eram lentos, medidos, cuidadosos. Como alguém caminhando através de um campo minado, testando cada movimento antes de se comprometer completamente com ele.
À medida que a pessoa se aproximava, mais detalhes se tornavam visíveis. Mello forçou seus olhos a focarem, piscando repetidamente para clarear a visão turva.
Jovem. A pessoa era jovem — não muito mais velha que ele, se é que era mais velha. Mas havia algo na postura, na forma como se movia, que sugeria mais idade. Maturidade forçada, talvez. O tipo que vem de experiências ruins demais.
E definitivamente albino. Mello podia ver isso agora. Cabelo completamente branco, quase prateado sob a luz fraca. Pele pálida de um jeito que ia além de simplesmente clara. Olhos... ele não conseguia ver a cor exata ainda, mas eram claros, isso era certo.
Alto. Jesus, ele era alto. Tinha que ter pelo menos um metro e oitenta, talvez mais. E musculoso também — Mello podia ver isso mesmo através do terno. Os ombros eram largos, o peito amplo, os braços pareciam preencher as mangas de um jeito que sugeria músculos bem desenvolvidos.
Como alguém tão jovem ficava tão grande assim?
A pergunta passou pela mente de Mello junto com outras mil. Quem era essa pessoa? O que estava fazendo ali? Por que vestido daquele jeito? E principalmente, por que diabos tinha decidido se aproximar de um estranho drogado em um beco escuro?
A figura — o garoto, Mello corrigiu mentalmente, porque era claramente um garoto apesar de todo o resto — parou a alguns passos de distância. Perto o suficiente para que Mello pudesse ver mais detalhes agora.
Russo. Algo nele gritava russo. Talvez fossem as feições, a estrutura óssea, algo indefinível mas presente. E tinha sangue no terno. Mello não tinha notado antes, mas agora que o garoto estava mais perto, ele podia ver as manchas escuras no tecido caro. Sangue seco, espalhado pelo peito e mangas como se...
Como se alguém tivesse sido ferido. Ou ferido alguém.
Mello deveria estar alarmado. Provavelmente deveria estar correndo na direção oposta, por mais que suas pernas permitissem. Mas ele não estava. Não conseguia reunir energia suficiente para se importar, para ser honesto.
Então ele fez a única coisa que fazia sentido no momento. Abriu a boca e falou, sua voz saindo arrastada e pastosa, as palavras se embaralhando levemente.
"Por que você tá vestido assim?"
Silêncio.
O garoto russo não respondeu. Sua mandíbula estava tensa, músculos saltando sob a pele pálida como se ele estivesse rangendo os dentes. Seus olhos — Mello podia ver agora que eram de um vermelho muito claro, quase rosados, típico de albinos — vasculhavam constantemente o beco, movendo-se de um lado para outro, checando sombras, procurando por... algo.
Ameaças. Ele estava procurando por ameaças.
Mello riu, o som saindo amargo e áspero de sua garganta. "Tá esperando alguém te atacar?" Suas palavras arrastavam, língua pesada na boca. "Porque se tiver, avisa. Quero assistir."
Nada. O garoto permaneceu em silêncio, aquela tensão irradiando dele em ondas que Mello podia sentir mesmo através da confusão química no seu cérebro.
Estranho. Tudo era tão absurdamente estranho.
Mello sentiu suas pernas começarem a ceder novamente. A parede não estava mais segurando ele adequadamente, sua postura estava escorregando, e ele estava cansado. Tão incrivelmente cansado.
Então ele simplesmente se deixou escorregar.
O movimento foi gradual, seu corpo deslizando pela parede úmida até seu traseiro encontrar o chão sujo do beco. A jaqueta de couro arrastou contra os tijolos com um som áspero, e ele sentiu a umidade do solo imediatamente secar através do tecido de suas calças. Nojento. Mas ele não tinha energia para se importar.
Sentado ali no chão imundo, Mello levantou os olhos para o garoto russo que ainda estava de pé, ainda tenso como uma corda esticada ao máximo. Algo sobre aquela rigidez, aquela vigilância constante, tocou algo em Mello. Uma risada amarga borbulhou em seu peito.
"Ei," ele disse, sua cabeça caindo levemente para o lado enquanto olhava para cima. "Se eu sofrer uma overdose aqui, você me esconderia numa lixeira?"
A pergunta saiu meio arrastada, meio séria, meio piada. Mello nem tinha certeza de qual parte era qual. Mas parecia importante saber. Parecia importante entender o que esse estranho de terno ensanguentado faria se ele simplesmente parasse de respirar ali mesmo no chão sujo.
Pela primeira vez, o garoto russo reagiu. Sua testa se franziu, rugas aparecendo entre as sobrancelhas brancas. Ele olhou para Mello, realmente olhou, e havia algo em seus olhos vermelhos pálidos que Mello não conseguia decifrar.
"Por quê você diria algo assim?"
A voz era profunda, carregada com um sotaque que confirmava as suspeitas de Mello. Russo. Definitivamente russo. E havia uma qualidade áspera nela, como se não fosse usada com frequência, ou como se estivesse sendo forçada através de uma garganta muito apertada.
Por quê? Que pergunta idiota.
Mello abriu a boca para responder com algo sarcástico, algo cortante e amargo que afastaria esse estranho e o deixaria sozinho como ele merecia estar. Mas o que saiu foi completamente diferente.
As lágrimas vieram primeiro.
Ele sentiu quando começaram a se formar, aquele ardor familiar atrás dos olhos que ele tinha lutado contra por tanto tempo. Não. Não aqui. Não na frente de um completo estranho. Mas seu corpo tinha outras ideias, e ele estava cansado demais para lutar.
Então elas caíram.
Lágrimas descendo pelo seu rosto, traçando caminhos através da sujeira acumulada, pingando da sua mandíbula. Elas queimavam ao passar pela pele cicatrizada do lado esquerdo do seu rosto, e Mello fechou os olhos com força, tentando pará-las e falhando miseravelmente.
"Eu não aguento mais," as palavras saíram quebradas, entremeadas com soluços que ele não conseguia controlar. "Não aguento mais me esforçar tanto e nunca... nunca conseguir ser o primeiro lugar."
E ali estava. A verdade que ele tinha tentado enterrar sob camadas de raiva e determinação e orgulho ferido e agora, aparentemente, sob químicos que prometiam fazer tudo desaparecer por um tempo.
Segundo lugar. Sempre segundo lugar.
Não importava quanto ele estudasse, quanto ele se dedicasse, quanto ele quebrasse a cabeça tentando resolver problemas impossíveis. Nate sempre estava um passo à frente. Sempre. Como se fosse fácil para ele, como se nem precisasse tentar enquanto Mello derramava sangue, suor e lágrimas só para chegar perto.
E ele estava tão cansado disso. Tão incrivelmente exausto de nunca ser bom o suficiente.
As lágrimas continuavam caindo, e Mello não tentou mais pará-las. Que diferença fazia? Esse estranho de terno ensanguentado já o tinha visto no fundo do poço. Poderia muito bem ver tudo.
Através da névoa de lágrimas e químicos e emoções brutas, Mello viu o garoto russo se mover. Algo passou pelo rosto pálido — uma expressão que Mello não conseguiu identificar completamente mas que parecia quase... dolorida. Como se as palavras de Mello tivessem tocado algo nele também.
O garoto deu um passo à frente, depois parou. Suas mãos — grandes, Mello notou vagamente, com dedos longos — se apertaram em punhos nas laterais do corpo. A mandíbula continuava tensa, mas havia algo diferente agora em seus olhos vermelhos pálidos.
Algo quente. Algo que parecia quase com... cuidado?
Então ele falou, e sua voz veio mais suave desta vez, ainda áspera mas carregada com uma certeza que fez algo apertar no peito de Mello.
"Eu vou te ajudar."
Três palavras simples. Uma promessa de um completo estranho que não tinha razão alguma para se importar com um gênio fodido chorando no chão de um beco.
Mello deveria rir. Deveria perguntar como, por quê, de que forma esse garoto possivelmente achava que poderia ajudar. Mas ele não fez nada disso.
Em vez disso, sentiu seus olhos ficarem ainda mais pesados. O choro tinha drenado o que restava da sua energia já esgotada, e tudo que ele queria agora era dormir. Esquecer. Deixar tudo desaparecer por um tempo.
Então foi isso que ele fez.
Mello deixou seus olhos se fecharem, a escuridão o envolvendo como um cobertor. Sua cabeça caiu levemente para o lado, encostando na parede fria atrás dele. A respiração que tinha estado irregular e entrecortada por soluços começou a se acalmar, se aprofundar, ficando mais ritmada.
Dormir. Só por um tempo.
O último pensamento consciente que passou pela mente de Mello antes de se entregar completamente ao sono foi sobre como era estranho se sentir... seguro. Ali, no chão imundo de um beco escuro, na presença de um completo estranho de terno ensanguentado, ele se sentia estranhamente seguro.
E então não havia mais nada além de escuridão e silêncio.
César ficou parado ali, olhando para o garoto loiro que tinha acabado de adormecer no chão sujo do beco. Sua respiração era mais calma agora, profunda e regular, o peito subindo e descendo em um ritmo constante que indicava que ele tinha realmente apagado.
O que ele deveria fazer agora?
César não tinha resposta. Sabia que deveria ir embora, continuar fugindo, colocar a maior distância possível entre ele e aqueles que tinham tentado matá-lo. Novamente. Mas olhando para aquele garoto magro com cicatriz no rosto e roupas de couro pretas, algo o mantinha preso no lugar.
Esse estranho não tinha tentado feri-lo. Não tinha olhado para ele com medo ou ódio ou ganância. Tinha apenas... falado. Chorado. Sido vulnerável de uma forma que César nunca tinha visto ninguém ser na sua frente.
E havia prometido ajudar. Por quê tinha feito isso? Ele não sabia. As palavras tinham saído antes que pudesse pensar, uma promessa que não tinha planejado fazer mas que agora pendia no ar entre eles como algo sólido e real.
César continuou ali, dividido entre o instinto de fugir e algo mais profundo que ele não conseguia nomear. Algo que o fazia querer ficar, proteger esse estranho quebrado que tinha lhe mostrado gentileza sem nem perceber.
Ele não podia simplesmente deixá-lo ali. Não assim.
Mas também não sabia o que fazer. Então ficou parado, uma sentinela alta e pálida no beco escuro, olhando para o garoto adormecido e se perguntando que tipo de confusão tinha acabado de entrar.
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