Chapter 1: O Rescaldo Lúcido e o Acordo Quebrado
Randal acordou primeiro. O quarto estava silencioso de uma forma incomum, contrastando com o zumbido sutil que restava em seus ouvidos da noite anterior. Ele moveu um braço, esticando o corpo sob os lençóis amassados. A luz do dia invadia o quarto, filtrada pelas cortinas pesadas, criando uma penumbra suave. Virou-se para Matt. Matt estava deitado de barriga para cima, com o cabelo verde espalhado no travesseiro, mas o rosto parecia incrivelmente calmo.
Essa calma surpreendeu Randal. Normalmente, após uma das festas caóticas de Matt, o colega de quarto acordava agitado, tossindo, e buscando imediatamente algo para voltar ao estado alterado. Mas Matt estava imóvel e, Randal notava, surpreendentemente lúcido. A ausência da névoa química no olhar de Matt era sempre um sinal, um farol raro no mar de destruição que ele representava. Randal admirava essa versão. Essa pessoa conseguia articular pensamentos, discutir literatura, e mostrar uma inteligência que Randal sabia existir, mas que raramente via.
Randal sentou-se na cama. Olhou para o relógio digital na mesa de cabeceira. Onze e meia da manhã. Não era tão tarde, considerando o evento da noite passada. A ressaca moral, ou a ressaca física, tinha mantido Matt em silêncio por tempo suficiente. Randal pensou que precisava aproveitar este momento. Eram oportunidades escassas.
"Você está acordado," Randal disse, mantendo a voz baixa, quase um murmúrio.
Matt não se moveu imediatamente. Apenas piscou, demoradamente. Demorou um momento, mas Matt virou a cabeça para o lado, encarando Randal. Matt parecia exausto, mas seus olhos estavam claros.
"Sim," Matt respondeu. A voz de Matt era rouca, mas firme. Não tinha o arrastar lento e pesado que Randal estava acostumado a ouvir. Matt parecia ser ele mesmo. O Matt que Randal perseguia.
Randal levantou-se. Ele procurou por suas roupas espalhadas pelo chão, sentindo o ar frio da manhã em sua pele. Não importava quantas vezes isso acontecesse, sempre havia uma estranha tensão no ar depois. Era sempre uma conexão física sem compromisso, impulsionada pelo caos e pela necessidade, mas para Randal, significava muito mais.
Ele vestiu uma camiseta e jeans. Andou até a porta do quarto, mas parou antes de abri-la. Randal precisava começar essa conversa agora, antes que a realidade da manhã atingisse Matt e ele se perdesse novamente.
"O apartamento é um desastre," Randal começou. Ele olhou para Matt, esperando uma reação.
Matt apenas observou Randal. "Imagino que sim," Matt disse, sem emoção.
Randal voltou a sentar-se na beira da cama, perto de Matt.
"É mais do que um desastre, Matt. Parece que um furacão passou por lá. Copos por toda parte, móveis virados, e aquele cheiro insuportável de cerveja e suor." Randal precisava de Matt para entender a extensão do problema. "Acho que a gente vai ter que pagar uma multa por danos no final do semestre."
Matt fechou os olhos brevemente. Parecia absorver a informação. "Eu limpo depois," ele disse, mas Randal sabia que ‘depois’ nunca chegava quando Matt estava em seu estado habitual.
"Você não limpa, Matt. Eu limpo. Eu sempre limpo. Ou deixo a bagunça lá até que você tenha outra festa e acumule mais lixo. Não podemos continuar assim," Randal insistiu. Ele olhava para a versão sóbria de Matt, a que ele considerava responsável, a que ele queria desesperadamente.
"E o que você propõe?" Matt perguntou. Matt se virou um pouco, apoiando o peso em um cotovelo. Seus olhos verdes, que normalmente pareciam turvos e sem foco, agora tinham uma intensidade que Randal achava linda.
"Não é só sobre a bagunça, Matt. É sobre você," Randal disse, tomando coragem. Era difícil falar sobre o vício de Matt, mesmo para a versão lúcida. Matt era evasivo e defensivo quando Randal tentava abordar o assunto.
Matt esperou, mas havia uma leve contração na mandíbula. Randal percebeu que Matt entendia o que estava por vir.
"Você não pode continuar assim. Todas as noites. As festas. Você está sempre alterado. Eu sei que você odeia a fama, eu sei que você tem seus problemas, mas você está se destruindo," Randal disse. Ele tentava falar com calma, mas a frustração acumulada transbordava em sua voz.
Matt desviou o olhar. Ele começou a brincar com a ponta de um lençol.
"Você me julga," Matt disse, a voz quase inaudível.
"Não te julgo, Matt. Eu me preocupo. Eu me importo. E eu não quero ver você desperdiçar tudo. Você é brilhante. Você escreve coisas incríveis quando está lúcido. Você toca muito bem," Randal lembrou. Ele sabia que precisava apelar para a parte de Matt que Matt valorizava.
Matt riu, um som vazio e seco. "O brilhante escritor de Letras que só sabe fazer letras de música sobre como o mundo é horrível e como a vida não vale a pena? É isso que você admira? A pessoa que nem consegue terminar um livro?"
"Admiro a pessoa que tenta, Matt. E sim, a pessoa que você é agora, neste momento, quando consegue falar sem o filtro de toda essa porcaria que você usa. Você é engraçado, é inteligente, e você se importa com as coisas," Randal argumentou.
Matt olhou para Randal, e por um instante, Randal viu uma fresta de vulnerabilidade, uma tristeza profunda que Matt geralmente escondia sob o caos e a euforia induzida. Matt parecia cansado de lutar, cansado de manter a fachada.
"É fácil falar quando você não está na minha cabeça, Randal. Não é só 'parar'. Eu sou assim. O caos é o meu estado natural," Matt murmurou.
Randal estendeu a mão e pousou-a suavemente no braço de Matt. Matt não se afastou. Isso era um bom sinal.
"Eu sei que não é fácil. Mas você nunca tenta. Você acorda, e a primeira coisa que você faz é se afundar de novo. Pelo menos hoje, você está aqui. Você está lúcido," Randal disse.
Matt soltou um suspiro pesado. "E o que você quer que eu faça? Vá limpar a sala agora? Me matricule em um grupo de apoio? Eu não sou como você, Randal. Eu não sou organizado e limpo. Eu não sou o garoto prodígio que vai se formar com honras."
Randal sabia que Matt tinha uma visão distorcida de si mesmo. O Matt sóbrio era autocrítico, mas o Matt viciado usava isso como desculpa.
"Eu não quero que você seja eu. Quero que você seja você, a versão que não está se matando lentamente. Me dê um dia," Randal propôs, a ideia surgindo de repente.
Matt levantou uma sobrancelha. "Um dia de quê?"
"Um dia normal. Vinte e quatro horas. Sem nada. Sem álcool, sem pílulas, sem o que quer que você esteja usando para se manter nesse estado constante. Um dia de sobriedade total. Vamos sair. Vamos almoçar fora. Você pode me contar sobre a sua tese de Letras. Podemos ir à livraria, ou você pode tocar alguma coisa para mim, se quiser," Randal explicou, detalhando a proposta.
Matt encarou Randal com uma mistura de curiosidade e ceticismo.
"Um desafio?" Matt perguntou.
"Sim. Um teste. Vinte e quatro horas. Se você conseguir passar um dia sendo você, a pessoa que você realmente é, talvez você perceba que não precisa de toda essa confusão para sobreviver. Eu quero que você veja que a vida pode ser diferente," Randal disse. Ele sabia que era um pedido audacioso, quase desesperado, mas ele precisava de uma prova, de um sinal de que Matt valia o esforço.
Matt hesitou. Ele olhou para o teto, pensativo. Randal observou a luta interna de Matt. A sobriedade era um esforço, uma resistência contra a correnteza que Matt havia criado para si mesmo.
"E qual é o seu prêmio se eu 'ganhar' esse desafio?" Matt perguntou, um pequeno sorriso surgindo no canto da boca.
"Não é um jogo, Matt. É a sua vida," Randal disse, mas suavizou o tom. "Mas, se você passar o dia, farei a sua parte da limpeza pelos próximos três meses. E eu te deixo em paz sobre as festas por um mês."
Matt riu novamente, desta vez com mais humor genuíno. "Três meses de limpeza? É uma oferta tentadora. Você realmente se importa com essa bagunça."
"Me importo com você, Matt. A bagunça é só o sintoma," Randal corrigiu.
Matt ponderou por mais um longo momento. Randal esperou, sentindo o tempo se arrastar. A tensão no quarto era quase palpável. Randal estava colocando todas as suas esperanças nessa pequena janela de oportunidade.
Matt se moveu na cama, chegando mais perto de Randal. A proximidade era intensa. Matt levantou a mão e tocou o rosto de Randal, um gesto que era raro fora do calor do momento pós-festa. A mão de Matt estava surpreendentemente quente.
"Você é persistente, Randal," Matt sussurrou.
"Eu preciso ser," Randal respondeu, sua voz embargada.
Matt se inclinou, e Randal esperava um beijo, mas Matt apenas encostou a testa na de Randal.
"Tudo bem. Eu aceito o seu desafio," Matt disse, finalmente. "Vinte e quatro horas. Sobriedade total. Um dia de 'normalidade' com o cara certinho."
Randal sentiu um alívio imediato, seguido por uma onda de esperança. Ele sorriu. "Ótimo. Eu vou tomar um banho e começar a limpar o básico na cozinha. Você se levanta e se veste, e a gente sai para tomar café da manhã, longe de toda essa confusão."
Matt acenou com a cabeça. "Pode ser."
Randal levantou-se da cama, sentindo-se mais leve do que em meses. Ele tinha conseguido. Tinha chegado à versão de Matt que ele desejava.
"Eu já volto," Randal disse.
Randal foi até o banheiro que ficava no corredor, fechando a porta atrás de si. Ele ligou o chuveiro, ajustando a temperatura. Enquanto a água esquentava, ele se despiu, pensando em como seria passar um dia inteiro com Matt, sem a influência das substâncias. Poderiam conversar sobre coisas reais, poderiam apenas existir juntos. Randal pensava que esse dia poderia ser o ponto de virada. Talvez Matt percebesse que havia uma saída, que havia uma vida que ele poderia viver.
Ele entrou no chuveiro. A água quente escorria por seu corpo, levando consigo o resquício da festa e a tensão da conversa. Randal lavou o cabelo rapidamente. Ele precisava ser rápido para não dar tempo a Matt de mudar de ideia.
Enquanto estava sob o chuveiro, Randal ouviu um ruído abafado vindo do quarto. Era um som pequeno, um clique sutil. Randal parou de se ensaboar, tentando identificar o som. Poderia ser Matt se levantando. Poderia ser Matt pegando roupas. Randal tentou ignorar o leve alarme em sua cabeça. Matt tinha concordado. Ele parecia sincero, embora cansado.
Randal terminou o banho, enrolou uma toalha na cintura e saiu do banheiro. Ele pegou roupas limpas no armário, vestindo-se rapidamente. Ele saiu do banheiro e andou pelo corredor em direção ao quarto, preparado para encontrar Matt pronto para sair.
Randal parou na porta do quarto. Matt estava sentado na cama, de costas para Randal, mas já vestido com uma calça de moletom e uma camiseta preta. Matt parecia pensativo.
"Pronto para começar o nosso dia normal?" Randal perguntou, entrando no quarto.
Matt virou a cabeça e sorriu para Randal, mas o sorriso não alcançou seus olhos. O olhar de Matt já não tinha a clareza de minutos atrás. Havia uma leve opacidade, um véu que Randal conhecia bem. O coração de Randal afundou.
Randal viu o movimento. Matt estava com a mão direita descansando perto da lateral da cama. Randal viu Matt mover a mão discretamente, deslizando algo para debaixo do travesseiro. Foi um movimento rápido, quase imperceptível, mas Randal viu.
O olhar de Randal se fixou no ponto onde Matt havia escondido o objeto. Ele soube imediatamente o que era. Era um dos pequenos frascos que Matt sempre mantinha por perto, uma das suas muitas ferramentas para escapar da realidade. Matt não tinha nem esperado Randal sair do banheiro. O acordo havia durado menos de dez minutos.
A esperança de Randal se desfez em frustração e desilusão. Ele tinha acreditado no vislumbre de sobriedade de Matt, na promessa. Mas Matt tinha quebrado o desafio antes mesmo de ele começar.
Matt se levantou da cama, esticando-se com um falso ar de inocência.
"Vamos, então. Eu estou pronto para o café da manhã," Matt disse, com a voz um pouco mais alta e animada do que antes. A mudança era sutil, mas Randal percebeu a euforia química começando a tomar conta.
Randal apenas olhou para Matt, sentindo a decepção amarga. Matt não conseguiria passar o dia sóbrio. Matt não tinha a intenção de tentar. Matt só queria que Randal parasse de incomodá-lo. Randal percebeu que precisaria de uma abordagem diferente, mais direta e confrontadora, para alcançar a pessoa que ele tanto admirava. Matt não se salvaria sozinho.
Randal respirou fundo, tentando manter a calma. Ele tinha visto o frasco, e Matt sabia que ele tinha visto. O silêncio se estendeu entre eles.
Matt forçou um sorriso, claramente desconfortável sob o olhar fixo de Randal.
"O que foi? Vamos. Estou com fome," Matt disse.
Randal não respondeu com palavras. Ele apenas olhou para Matt, a promessa quebrada pairando no ar. O vislumbre de Matt lúcido tinha desaparecido. Randal teria que lutar muito mais para trazê-lo de volta.
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