Chapter 2: A Proposta do Cientista A manhã seguinte na casa de Lena começou cedo. O cientista, cujo nome Matt ainda não sabia, chegou pouco depois do sol nascer, batendo na porta com uma discrição que contrastava com a pressa da hora. Lena já estava de pé, vestida com suas roupas mais modestas, mas ainda decentes, e preparou um chá simples para os três. O cientista era um homem de meia-idade, com uma postura ereta e olhos atentos que pareciam medir tudo ao redor. Ele vestia uma túnica bem cuidada que indicava sua afiliação com o Castelo, mas havia uma mancha de tinta quase invisível na manga, sugerindo uma dedicação ao trabalho prático, e não apenas à burocracia. Matt, vestindo o terno que Lena lhe dera, sentia-se um pouco deslocado, mas a serenidade habitual não o abandonava. Ele observava a interação entre Lena e o cientista, uma amizade improvável que o intrigava, mas ele também entendia que a bondade se manifestava em todas as camadas sociais. O cientista, após uma breve troca de gentilezas e um gole do chá, foi direto ao ponto. Ele olhou para Matt, avaliando-o com uma curiosidade profissional. “Lena me falou sobre você, Matt, e sobre a sua filosofia,” o cientista disse, ajustando a gola de sua túnica. “Ela disse que você possui uma clareza de pensamento notável, e eu acredito nela, porque ela não costuma se enganar sobre as pessoas. Eu entendo que você está procurando um lugar para ficar na capital, e eu estou feliz em oferecer a minha casa por um tempo.” Matt inclinou a cabeça em um gesto de agradecimento silencioso, e ele sabia que aquela era uma oportunidade que mudava radicalmente a sua situação. “Contudo,” o cientista continuou, e o tom dele mudou de amigável para estritamente profissional, “eu não sou um homem que oferece caridade sem propósito. Eu trabalho no Castelo, e meu tempo é valioso, assim como o seu tempo é valioso, embora de uma forma diferente. Minha casa não é um albergue, e eu tenho meus próprios projetos que exigem dedicação.” Ele fez uma pausa, fixando os olhos em Matt. “Eu lhe ofereço um teto, comida e um ambiente de estudo, mas em troca eu exijo uma condição. Eu preciso da sua ajuda em um projeto pessoal que está consumindo todo o meu tempo livre. É algo que não está diretamente ligado às minhas obrigações no Castelo, mas que tem uma importância fundamental para mim e para o reino.” Matt, que havia passado meses vivendo de esmolas e da boa vontade alheia, não se surpreendeu com a proposta de uma troca. Ele esperava algo assim, pois ele compreendia que a generosidade pura era rara, embora a tivesse encontrado em Lena. “Qual seria o projeto?” Matt perguntou, e a voz dele era calma e direta. O cientista sorriu de forma sutil, quase um vislumbre de alívio. Ele parecia satisfeito por Matt não ter rejeitado a ideia de imediato. “O reino é rico e tradicional, mas a desigualdade social é um abismo que está crescendo entre a elite e as ruas,” o cientista explicou. “Você viu isso em primeira mão, Matt, e Lena é um exemplo disso. Eu, como estudioso, vejo os números e as tensões sociais aumentando, mas falta a perspectiva humana, a visão moral e ética que a minha ciência não consegue fornecer. Eu preciso de uma perspectiva filosófica sobre as tensões sociais e a desigualdade do reino. Eu preciso de alguém que tenha vivido o que os números apenas descrevem, e que possa articular as implicações morais disso.” O cientista estava, na verdade, pedindo a Matt para ser seu conselheiro moral, um intérprete da miséria que ele só podia observar de longe, e isso era uma tarefa que Matt podia aceitar, mas a palavra "trabalho" e a ideia de "projeto" o incomodavam um pouco. Matt pensou por um momento, refletindo sobre a natureza de sua própria existência. Sua filosofia de vida era de desapego radical. Ele não possuía nada, nem mesmo o chapéu que cobria sua cabeça, e ele dependia da generosidade humana para sua sobrevivência. “Eu agradeço o convite para a sua casa,” Matt começou, e ele se dirigiu ao cientista com total honestidade. “E eu entendo a necessidade de uma troca. No entanto, eu devo ser claro sobre a minha forma de vida, porque eu não aceito ‘trabalhar’ no sentido que a maioria das pessoas entende, nem aceito acumular posses além do estritamente necessário para sobreviver. Minha vocação é a contemplação, e o meu sustento é um subproduto da vontade humana.” Matt explicou que ele vivia apenas do que a generosidade e a necessidade alheia lhe ofereciam. “Eu vivo apenas do que a vontade humana me oferece de forma espontânea, seja um prato de sopa, um lugar para dormir, ou uma conversa. Aceitar um pagamento ou um emprego fixo, mesmo que seja apenas em troca de moradia, seria ir contra o princípio central da minha filosofia. Eu me tornei um receptáculo da generosidade, e isso me permite ver o mundo sem a distorção das posses ou da ambição.” O cientista ouviu Matt com atenção, e ele parecia intrigado pela rigidez daquele código de conduta. “Então, você não está disposto a ‘trabalhar’ em troca da minha hospitalidade?” o cientista perguntou, querendo clareza. “Eu estou disposto a ‘compartilhar’,” Matt corrigiu gentilmente, “a oferecer o meu tempo e a minha perspectiva, que é o único bem que eu possuo. Se a minha visão sobre a desigualdade puder auxiliar o seu estudo, então isso será a minha contribuição, a minha doação, assim como o seu convite é a sua doação. Não será um trabalho, mas uma troca de presentes.” Matt queria deixar claro que a sua participação não era uma obrigação contratual, mas um ato de boa vontade, e ele sabia que isso era crucial para manter a sua integridade filosófica. O cientista ponderou sobre a distinção. O que importava para ele era o resultado, a obtenção da perspectiva filosófica de Matt. Se Matt chamasse isso de “troca de presentes” ou “compartilhamento” em vez de “trabalho”, não fazia muita diferença para o projeto. O importante era que ele estaria em sua casa e dedicaria seu tempo à análise. “Aceito os termos da troca de presentes, Matt,” o cientista concordou, estendendo a mão para um aperto. “Minha casa está aberta para você, e em troca, você me oferece a sua mente. É um acordo que me parece justo, e agora precisamos ir, porque o tempo urge.” Matt apertou a mão do cientista. O acordo estava selado, e Lena, que observava a cena em silêncio, deu um passo à frente. “Eu fico feliz por você, Matt,” Lena disse, e havia uma mistura de alegria e tristeza na voz dela. “Você vai ter um lugar seguro, e eu vou ter o meu destino para buscar. Eu me sinto mais leve sabendo que você não estará mais no beco.” Matt a olhou, e a gratidão dele era profunda, e ele não precisava de palavras elaboradas para expressá-la. “Você me deu mais do que um teto, Lena,” Matt disse, e ele olhou para ela com sinceridade. “Você me deu a esperança de que a bondade reside nos corações mais oprimidos, e essa lição vale mais do que qualquer riqueza que o cientista possa me oferecer.” O cientista pigarreou discretamente, impaciente para partir. “Precisamos ir, Matt,” o cientista disse. “Minha residência fica um pouco distante daqui, e eu preciso estar no Castelo no início da tarde para cumprir minhas obrigações. Você tem alguma bagagem?” Matt apenas apontou para o terno que vestia. “Apenas o que a generosidade de Lena me ofereceu,” ele respondeu. Lena, com um sorriso, entregou-lhe uma pequena bolsa de tecido que continha um pouco de pão, queijo e uma garrafa de água. Ela insistiu que ele levasse a comida, pois não sabia quando ele faria sua próxima refeição. Matt aceitou o presente, e ele sabia que aquela era a última manifestação da generosidade dela por um tempo. Os três se despediram. Lena prometeu que se dedicaria a juntar o dinheiro necessário para a longa viagem ao leste, em busca do Templo da Generosidade Silenciosa. Matt a encorajou mais uma vez, e ele sabia que ela tinha a força para ter sucesso. Matt e o cientista deixaram a pequena casa. O contraste entre o ambiente que Matt deixava e o mundo para onde ele se dirigia era gritante. A casa de Lena estava localizada em um bairro modesto, cheio de vielas estreitas e cheiros de comida barata e lixo acumulado. A luz do sol da manhã mal alcançava o chão entre os edifícios. O cientista, que agora Matt soube que se chamava Silas, conduziu Matt pelas ruas. Silas andava com passos rápidos e decididos, e ele não parecia se incomodar com o cenário de pobreza ao redor, o que sugeria que ele estava acostumado àquele ambiente. Eles se moviam em direção à parte mais alta da cidade, onde a elite e os serviçais do Castelo residiam. Enquanto caminhavam, Silas quebrou o silêncio. “Eu estou fascinado pela sua escolha de vida, Matt,” Silas disse, mantendo o ritmo acelerado. “É um experimento social em si mesmo. Você abraça a miséria voluntariamente para obter um conhecimento que eu, com todo o meu acesso aos dados, nunca poderei alcançar.” Silas então fez uma pergunta que Matt achou imediatamente invasiva, porque a pergunta era puramente acadêmica. “Me diga, Matt, você pode quantificar a dor da miséria que você vivenciou? Por exemplo, em uma escala de zero a dez, sendo dez a dor insuportável da fome e do frio extremos, qual seria a sua média diária nos últimos seis meses? E como essa dor se correlaciona com a perda de dignidade?” Matt parou de andar por um momento. A pergunta de Silas o atingiu de forma negativa. O cientista estava tentando objetificar e quantificar a dor que Matt havia suportado, reduzindo sua experiência humana a dados estatísticos, o que era um absurdo para Matt. “Silas,” Matt disse, e o tom dele era firme, mas sem raiva. “A dor não é uma variável que se possa medir em um gráfico. A dor, a miséria e a perda de dignidade não são números que se somam ou se subtraem. Elas são a experiência total da existência em um estado de privação. Tentar quantificar isso é como tentar medir a cor do vento.” Matt continuou, e ele sentia-se incomodado pela tentativa do cientista de racionalizar o sofrimento. “Quando você está no beco, a dor não é apenas física. Ela é a soma da humilhação de pedir, do frio que não cessa, da incerteza do amanhã, e da invisibilidade que a sociedade lhe impõe. Não existe um ‘dez’ isolado. O dez é a condição inteira, e não um pico de sofrimento. A sua tentativa de objetificar a dor apenas demonstra o quanto a elite está distante de realmente entender a miséria. Vocês querem dados para solucionar um problema moral, mas a moralidade não é um dado.” Silas, que estava acostumado a lidar com números e fatos concretos, ficou visivelmente surpreso pela intensidade da resposta de Matt. Ele parou de andar também, e ele percebeu que havia cruzado uma linha. “Peço desculpas, Matt,” Silas disse. “Eu sou um homem de ciência, e eu tenho a tendência de reduzir tudo a fórmulas e observações. É a minha maneira de tentar entender o mundo, mas eu reconheço que o sofrimento humano não se encaixa nas minhas tabelas. Essa é precisamente a razão pela qual eu preciso da sua perspectiva.” Eles retomaram a caminhada, e o silêncio que se seguiu foi um pouco tenso, e Matt usou esse tempo para observar a mudança de cenário. A cada quadra que avançavam, as vielas escuras se transformavam em ruas pavimentadas, os edifícios se tornavam mais altos e imponentes, e a multidão nas ruas diminuía, sendo substituída por guardas uniformizados e carruagens elegantes. Eles haviam cruzado a fronteira invisível que separava a miséria da riqueza. A residência de Silas ficava em um bairro tranquilo, perto da muralha interna que circundava o Castelo. Era uma casa modesta para os padrões da elite, mas luxuosa se comparada ao beco ou à casa de Lena. O jardim era bem cuidado, e a porta de madeira maciça exibia um brilho polido. Silas abriu a porta com uma chave e conduziu Matt para dentro. O interior da casa era limpo e ordenado, cheio de estantes de livros e instrumentos de medição em todos os cantos. Havia um cheiro sutil de pergaminho velho e produtos químicos. “Sinta-se em casa, Matt,” Silas disse, tirando o casaco e pendurando-o em um cabide. “Eu não tenho muitos serviçais, porque eu prefiro a solidão para os meus estudos. Você terá um quarto de hóspedes simples no andar de cima, mas antes de tudo, precisamos discutir o projeto.” Silas não deu tempo para Matt sequer respirar. Ele conduziu Matt diretamente para um cômodo nos fundos da casa, que era obviamente o seu escritório particular. O escritório era o centro do universo de Silas. As paredes estavam forradas com mapas, diagramas complexos e prateleiras que se curvavam sob o peso de livros e volumes de pesquisa. No centro, havia uma grande mesa de madeira coberta por pilhas organizadas de documentos e gráficos. A luz natural entrava por uma grande janela, iluminando a poeira que pairava no ar. Silas apontou para a mesa. “Eu chamo isso de ‘O Estudo da Fratura Social’,” Silas disse, e ele pegou uma série de documentos e os espalhou sobre a mesa para que Matt pudesse vê-los. “Estes são dados que eu coletei secretamente ao longo dos últimos cinco anos, Matt,” Silas explicou, e a voz dele estava cheia de uma paixão contida. “São números que o Castelo e a nobreza preferem ignorar. Estes gráficos mostram o crescimento exponencial da concentração de riqueza. Esta coluna aqui, por exemplo, é a taxa de mortalidade infantil nas áreas pobres da cidade, e ela está aumentando a cada ano. Estes documentos detalham a apropriação de terras por parte de algumas famílias nobres, o que empurra os camponeses para a miséria das cidades. É uma catástrofe social em câmera lenta.” Matt olhava para os documentos, e ele não precisava dos números para saber a verdade. Ele tinha vivido essa verdade. Mas ele reconhecia a dedicação de Silas em documentar o que era óbvio para os marginalizados. “Por que o sigilo, Silas?” Matt perguntou. “Se você tem essas evidências, por que não as apresenta abertamente?” Silas suspirou, e o rosto dele ficou sério. “O reino é tradicional e extremamente conservador. A elite acredita que a desigualdade é a ordem natural das coisas, uma prova de mérito divino. Questionar a acumulação de riqueza é questionar a própria estrutura de poder. Se o Castelo souber que eu estou estudando a desigualdade com a intenção de propor reformas, eu serei demitido e, talvez, silenciado de forma mais permanente. Eu não sou um ativista, Matt; eu sou um cientista, e eu estou buscando a solução mais eficaz.” Silas revelou a Matt o seu plano a longo prazo. “Eu estudo secretamente o problema da desigualdade com a intenção de, futuramente, quando eu tiver um argumento irrefutável, propor reformas e mudanças estruturais ao Castelo. Não uma revolução, mas uma correção na rota, uma forma de salvar o reino de sua própria arrogância antes que a ‘fratura social’ se torne uma quebra total.” Silas então moveu os documentos de dados e revelou uma pilha de livros grossos que estavam escondidos por baixo. “É aqui que você entra, Matt. Eu entendo a magnitude do problema, mas eu preciso da fundamentação moral. Eu preciso de argumentos que transcendam a estatística e atinjam a consciência da elite.” Silas pegou um dos volumes, que parecia ser uma compilação de tratados de pensadores antigos. “Eu compilei este volume de textos filosóficos e econômicos relacionados à moralidade da acumulação de riqueza. Há pensamentos sobre a justiça distributiva, sobre a responsabilidade do indivíduo perante a comunidade, e sobre a ética da pobreza e da opulência. Eu preciso de alguém que possa mergulhar nisso e me trazer a essência.” Ele colocou o volume nas mãos de Matt. “Eu solicito a você que prepare uma síntese crítica sobre a moralidade da riqueza, baseada nesses textos. Eu não preciso de um trabalho acadêmico; eu preciso de um manifesto moral, algo que eu possa usar para mover a consciência de quem detém o poder. Você tem o conhecimento filosófico, e agora você tem o tempo e o ambiente para se dedicar a isso.” Matt pegou o volume, e o peso do livro era significativo. Ele olhou para a capa, que estava empoeirada, e a sensação do papel sob os dedos era estranha, pois fazia muito tempo que ele não segurava um livro. Ele olhou para o volume por um longo momento, e o silêncio no escritório era profundo, sendo interrompido apenas pelo som da respiração de Silas. Matt levantou os olhos e olhou para o cientista. Matt moveu o livro nas mãos, e ele não o abriu, e ele sabia que precisava ser honesto sobre a sua limitação. “Silas,” Matt começou, e a voz dele estava baixa, mas clara. “Eu considero a sua causa nobre e o seu objetivo fundamental para o futuro deste reino. Eu estou disposto a ajudá-lo com a minha perspectiva e com a minha experiência de vida, que é o que você realmente precisa.” Matt pausou, e ele olhou diretamente para Silas, e ele sabia que aquela confissão mudaria a dinâmica da troca deles. “Mas eu devo lhe dizer algo que eu não mencionei antes, e que pode afetar a sua solicitação. Eu não sei ler, nem escrever.”

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