Chapter 1: Evidências e Choros
A área industrial abandonada cheirava a óleo velho e metal enferrujado. Mello andava entre os galpões vazios carregando uma mochila pesada que precisava desaparecer antes do amanhecer. Ele tinha aproximadamente duas horas para descartar tudo sem deixar rastros que pudessem conectá-lo à operação da noite anterior.
O galpão que escolheu ficava no final do complexo. Paredes de concreto rachado e janelas quebradas que deixavam entrar o vento frio de março. Mello empurrou a porta enferrujada e entrou. O lugar era perfeito porque ninguém vinha aqui havia anos. Ele já tinha usado este local três vezes antes sem problemas.
Abriu a mochila e começou a separar os itens. Documentos falsos foram rasgados em pedaços pequenos. Ele planejava queimá-los em recipientes diferentes para não deixar muita cinza concentrada em um só lugar. A arma precisaria ser desmontada e as peças espalhadas em diferentes pontos da cidade ao longo da próxima semana.
Foi quando ouviu o choro.
Mello parou de rasgar os papéis. O som era fraco mas persistente. Vinha de fora do galpão. Provavelmente um gato preso em algum lugar. Ele voltou ao trabalho ignorando o barulho.
O choro continuou.
Mello terminou de rasgar os documentos e começou a desmontá-los ainda mais. Cada pedaço não podia ter mais que uma palavra legível. Era um trabalho tedioso mas necessário. O choro do lado de fora ficava mais alto a cada minuto que passava.
Depois de quinze minutos aquele som começou a irritá-lo de verdade. Não era exatamente alto, mas tinha uma qualidade penetrante que tornava impossível concentrar-se completamente. Ele tentou focar na separação dos componentes da arma mas o choro simplesmente não parava.
Mello largou as peças na mochila e caminhou até a porta. Se era um gato, ele podia simplesmente espantá-lo para longe. O animal provavelmente iria embora e ele poderia terminar o trabalho em paz.
O som vinha de trás do galpão. Mello contornou o prédio pisando em vidros quebrados e lixo acumulado. A área dos fundos era usada como depósito de entulho. Havia pilhas de pneus velhos, latas de tinta enferrujadas e várias caixas de papelão jogadas sem ordem.
O choro vinha de uma dessas caixas.
Mello se aproximou. A caixa era de papelão comum, do tipo usado para transportar produtos de supermercado. Estava parcialmente amassada e tinha manchas de umidade. Quando ele olhou dentro, levou alguns segundos para processar o que via.
Era uma bebê.
Recém-nascida pelo que parecia. Embrulhada em um pano sujo que talvez tivesse sido branco em algum momento. A pele dela estava com uma tonalidade azulada que Mello reconheceu imediatamente como hipotermia. A criança chorava mas o som era fraco. Ela estava morrendo.
Mello deu um passo para trás. Isso não era problema dele. Alguém tinha abandonado a bebê aqui e ela morreria em questão de horas, talvez minutos. Triste, mas não era responsabilidade dele resolver.
Ele começou a andar de volta para o galpão. O trabalho precisava ser terminado antes do amanhecer. Não havia tempo para se envolver com situações complicadas que não diziam respeito a ele.
O choro continuou atrás dele. Mais fraco agora.
Mello entrou no galpão e pegou a mochila. Talvez fosse melhor mudar de local. Encontrar outro lugar para descartar as evidências onde não houvesse distrações. Ele conhecia pelo menos dois outros galpões abandonados na região que poderiam servir.
Mas enquanto guardava as peças da arma de volta na mochila, aquele choro fraco não saía da cabeça dele. A criança estava morrendo lá fora enquanto ele organizava papéis e metal. Em meia hora ela estaria morta.
Mello parou com as mãos na mochila. Por que isso importava? Pessoas morriam todos os dias. Ele mesmo já tinha matado pessoas. Uma bebê abandonada por pais que obviamente não a queriam não deveria fazer diferença nenhuma.
Mas continuava importando por algum motivo idiota.
Ele pegou o celular e discou o número de emergência. Poderia fazer a ligação anonimamente, dar a localização e ir embora antes que alguém chegasse. Simples e sem envolvimento direto.
O telefone mostrou "sem sinal" na tela.
Mello olhou para o aparelho como se ele tivesse feito algo pessoalmente ofensivo. É claro que não havia sinal. Esta área industrial abandonada ficava em um vale rodeado por colinas de metal e concreto que bloqueavam a recepção. Ele sabia disso. Era justamente por isso que tinha escolhido este lugar.
Poderia caminhar até encontrar sinal. Talvez quinze minutos de caminhada até a estrada principal. Fazer a ligação de lá e voltar para terminar o trabalho.
Mas quinze minutos para ir, mais o tempo da ligação, mais quinze para voltar. Meia hora no mínimo. A bebê não tinha meia hora. Já estava quase sem vida quando ele a tinha visto há cinco minutos.
Mello guardou o telefone e ficou parado no meio do galpão vazio. A escolha era simples. Terminar o trabalho e deixar a criança morrer, ou fazer algo completamente estúpido que poderia complicar sua vida de formas que nem conseguia prever.
O choro havia parado. Isso provavelmente significava que a bebê estava perto do fim.
Mello caminhou de volta até a caixa de papelão. A criança ainda respirava mas mal. Os lábios estavam azuis e o corpo tremia em espasmos fracos. Talvez já fosse tarde demais de qualquer forma.
Ele tirou a jaqueta de couro que vestia e pegou a bebê da caixa. O corpo dela estava gelado. Mello embrulhou a criança na jaqueta tentando transferir algum calor. A bebê era tão pequena que cabia facilmente em suas mãos.
Agora o que fazer? Ele não podia simplesmente aparecer em um hospital com uma criança abandonada. Isso levantaria perguntas. Ele teria que inventar uma história sobre onde a encontrou. A polícia seria envolvida. Haveria investigações.
Mello começou a caminhar de volta para o galpão carregando a bebê embrulhada. Ela tinha parado de chorar completamente agora. Ele verificou se ainda respirava. Sim, mas muito fraco.
Dentro do galpão ele acendeu uma das lanternas que tinha trazido e examinou a criança mais de perto. Definitivamente recém-nascida. Talvez alguns dias de vida, não mais que isso. Cordão umbilical ainda estava preso mas já seco. Alguém tinha dado à luz esta criança em algum lugar e depois simplesmente a jogou aqui para morrer.
O corpo da bebê começou a ficar um pouco menos gelado envolto na jaqueta de couro. Mello segurou ela contra o peito tentando fornecer mais calor corporal. A criança fez um som fraco, algo entre um gemido e um suspiro.
Ele precisava tomar uma decisão. Hospital significava perguntas e exposição. Deixar ela aqui significava morte certa. Não havia opção três aparentemente.
Mello olhou para a mochila cheia de evidências que precisavam ser descartadas. O trabalho tinha que ser feito esta noite. Não podia ser adiado. Mas também não podia ser feito enquanto carregava uma bebê recém-nascida nos braços.
A solução veio de forma relutante. Levar a criança consigo temporariamente. Mantê-la aquecida e viva até conseguir descobrir uma forma de entregá-la anonimamente em algum lugar seguro. Talvez a porta de um hospital durante a madrugada. Ou uma igreja. Algum lugar onde encontrariam ela rapidamente.
Ele pegou a mochila com a mão livre e saiu do galpão. A bebê permaneceu quieta contra seu peito. Mello caminhou pelas ruas vazias em direção ao apartamento que usava como base temporária. O trajeto levou quarenta minutos. Durante todo o caminho ele manteve a criança escondida dentro da jaqueta.
O apartamento era pequeno e mal mobiliado. Apenas o essencial. Mello nunca ficava em um lugar por muito tempo. Ele colocou a bebê em cima da mesa da cozinha, ainda embrulhada na jaqueta. A criança tinha voltado a chorar. Um som fraco mas constante.
Comida. Bebês precisavam de leite. Mello não tinha leite. Não tinha nada relacionado a crianças. Por que teria?
Ele vasculhou os armários da cozinha procurando algo que pudesse servir. Água com açúcar talvez? Não, isso provavelmente mataria ela. Bebês recém-nascidos tinham estômagos sensíveis. Ele se lembrava vagamente de ter lido isso em algum lugar.
A loja de conveniência mais próxima ficava a três quarteirões. Mello pegou dinheiro e deixou o apartamento, trancando a porta. Durante a caminhada até a loja ele tentou lembrar o que bebês comiam. Fórmula infantil, obviamente. Mamadeiras. Fraldas provavelmente.
A loja estava quase vazia às três da manhã. Apenas o atendente sonolento atrás do balcão. Mello encontrou uma seção pequena de produtos infantis e pegou uma lata de fórmula, uma mamadeira e um pacote de fraldas. O atendente nem olhou para ele durante a compra.
De volta ao apartamento a bebê ainda chorava. Mello preparou a fórmula seguindo as instruções na lata. Água morna, medida exata do pó, misturar bem. Ele testou a temperatura no pulso como as instruções mandavam.
Pegar a bebê nos braços pareceu estranho e desconfortável. Ela era tão pequena que Mello tinha medo de quebrá-la apenas segurando. Ele posicionou a mamadeira perto da boca dela e a criança começou a sugar imediatamente.
Assistir ela comer era bizarro. Mello estava ali, um terrorista com as mãos manchadas de sangue de operações que nem conseguia contar, dando mamadeira para uma recém-nascida abandonada. A situação toda era absurda.
A bebê tomou metade da mamadeira antes de parar. Mello não sabia se isso era normal ou não. Ele colocou ela de volta na mesa e tentou descobrir como funcionavam as fraldas. O processo foi mais complicado que desmontar a arma que tinha na mochila.
Depois de trocar a fralda ele improvisou uma cama usando gavetas da cômoda e toalhas limpas. Colocou a criança lá dentro e ela finalmente parou de chorar. Os olhos dela se fecharam e ela adormeceu.
Mello olhou para a bebê dormindo. Amanhã de manhã ele a levaria para algum lugar seguro. Hospital, delegacia, orfanato. Qualquer lugar onde pessoas competentes pudessem cuidar dela adequadamente.
Mas primeiro precisava terminar de descartar as evidências. Mello pegou a mochila e saiu do apartamento novamente. Voltou à área industrial e terminou o trabalho que tinha começado. Queimou os documentos, desmontou a arma, escondeu as peças em diferentes locais. Tudo feito metodicamente e sem pressa.
Quando voltou ao apartamento já eram seis da manhã. A bebê tinha acordado e chorava novamente. Mello preparou outra mamadeira e alimentou ela. Trocou a fralda. Colocou ela de volta para dormir.
Ele planejava sair assim que ela adormecesse. Levar a criança até o hospital mais próximo e deixá-la na entrada. Alguém a encontraria rapidamente. Problema resolvido.
Mas a bebê não adormeceu. Ela ficou acordada olhando para o teto com olhos que nem conseguiam focar direito ainda. Mello esperou. Uma hora passou. Ela ainda estava acordada.
Talvez fosse melhor esperar até anoitecer. Deixar uma bebê na porta de um hospital durante o dia era mais arriscado. Câmeras de segurança, testemunhas. À noite seria mais seguro.
Mello passou o dia no apartamento cuidando da criança. Mamadeiras a cada poucas horas. Fraldas quando necessário. Era um trabalho tedioso e repetitivo que não permitia fazer mais nada.
Quando anoiteceu ele preparou a bebê para sair. Embrulhou ela na jaqueta de couro novamente. Mas ao abrir a porta do apartamento Mello hesitou. Deixá-la em um hospital ainda parecia arriscado. Câmeras registrariam ele se aproximando. Alguém poderia vê-lo.
Melhor esperar mais um dia. Planejar adequadamente. Encontrar um lugar sem câmeras. Fazer isso direito para não se expor.
No segundo dia a rotina continuou. Mamadeiras, fraldas, sono irregular. A bebê chorava menos agora que estava alimentada e aquecida. Mello passava as horas assistindo ela dormir e acordar, pensando em como se livrar desta responsabilidade sem complicações.
Ele poderia simplesmente deixá-la em algum lugar público. Um parque, uma praça. Mas isso significava expô-la ao frio novamente. Alguém poderia não encontrá-la a tempo. Ela poderia morrer.
O hospital ainda parecia a melhor opção. Mello só precisava descobrir como fazer isso sem ser identificado. Talvez à noite, usando um capuz. Deixar ela em uma caixa perto da entrada de emergência e ir embora rapidamente.
No terceiro dia Mello ainda não tinha levado a bebê para lugar nenhum. Ele continuava adiando a decisão, sempre encontrando algum motivo para esperar mais um pouco. O tempo não estava bom. Aquela rua tinha muitas câmeras. O hospital estava muito movimentado.
A verdade, que ele relutava em admitir, era que deixar a criança estava ficando mais difícil a cada dia que passava. Ela já reconhecia o rosto dele. Quando ele se aproximava, ela parava de chorar. Quando ele a alimentava, ela olhava diretamente para ele com aqueles olhos que ainda não conseguiam focar direito.
Mello segurou a bebê nos braços enquanto preparava mais uma mamadeira. Três dias atrás ela estava morrendo em uma caixa de papelão. Agora estava aqui, aquecida e alimentada. Viva por causa dele.
Ele sabia que precisava entregá-la logo. Cada dia que passava tornava tudo mais complicado. Mas quando olhou para a criança dormindo em seus braços depois de terminar a mamadeira, Mello percebeu que talvez precisasse de mais alguns dias para planejar adequadamente.
Apenas mais alguns dias.
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