Chapter 2: O Caos do Metrônomo Quebrado
Hessoo respirou fundo, abriu o roteiro na primeira página e se preparou para mergulhar no mundo sombrio e glamouroso de G. Ele ignorou a presença de César, o ator, ao lado, focando apenas nas palavras, na cadência, no nascimento daquele homem complexo que ele teria o trabalho de dar vida. O mundo exterior, por enquanto, tinha que desaparecer. O trabalho estava apenas começando.
A leitura avançou rapidamente. A energia na sala mudou de uma expectativa tensa para uma vibração de foco concentrado. A diretora musical, Clara, com seu humor inabalável, comandava as transições de cena, fazendo comentários pontuais sobre o ritmo e a emoção de cada fala. Por enquanto, Hessoo estava em seu elemento: o texto.
Sua voz, naturalmente controlada e modulada pelo treinamento teatral, assumiu o tom grave e melancólico de G, o homem que, na superfície, era o pilar de uma comunidade e, na intimidade, estava desmoronando sob o peso de seus segredos. Ele lia as falas de G na defesa inicial, o prólogo da narrativa, onde G ainda mantinha uma fachada de inocência e controle sobre a situação após a morte de Carlos.
O ator que interpretava Carlos, um homem chamado Rafael, tinha uma voz barítono surpreendentemente calorosa, o que criava um contraste doloroso com a frieza calculada das falas de G. Hessoo notou a química sutil que estava se formando ali, mesmo que fosse apenas textual. A dinâmica entre G e Carlos, mesmo através de diálogos gravados, era de uma tensão implícita, um ciclo de amor e ressentimento que precisava transparecer.
E então, veio o momento de César. O ator César.
Hessoo sentiu uma pontada de curiosidade antes mesmo de César abrir a boca. O personagem César era o fogo, o catalisador. Ele precisava ser impulsivo, desregrado.
César (o ator) começou a ler. Sua voz era ligeiramente rouca, com uma inflexão que, surpreendentemente, não era forçada. Era natural. Era um timbre que se insinuava, que parecia prometer algo perigoso e irresistível. O G de Hessoo era contido; o César de César era expansivo.
A leitura da primeira cena de confronto entre G e César, ainda de forma preliminar, parecia carregar uma eletricidade inesperada. Era um jogo de gato e rato, onde a atração era óbvia, mas também a desconfiança. César elevou a voz quando o texto pedia paixão, e abaixou para sussurros cúmplices nos momentos de sigilo.
Hessoo, pela primeira vez desde que Patrícia começou o discurso, esqueceu-se de que estava na sala de ensaios. Ele estava apenas reagindo ao homem à sua frente, imerso na troca de olhares e intensidades permitidas pela leitura. Era a prova de que ele não precisava 'trabalhar' a química, ela parecia estar ali, pronta.
Ele olhou para César, e percebeu que César estava sorrindo levemente. Não era o sorriso do ator César, mas sim uma expressão do personagem, uma satisfação implícita em ter desvendado um segredo de G.
Clara, a diretora musical, interrompeu com um aplauso discreto. "Perfeito. Hessoo, César, essa tensão está deliciosa. É exatamente o que precisamos. Agora, vamos pular algumas cenas e ir para a parte dois.”
O resto da leitura passou em um borrão para Hessoo, que estava agora mais relaxado, mas ainda sob a influência da interação com César. A sensação de que a química estava ali de forma orgânica era um alívio imenso. Para ele, o desafio agora era manter essa energia e transformá-la em arte refinada, livre de quaisquer excessos do mundo real. G precisava de César, mas Hessoo precisava de G.
No final da tarde, Patrícia levantou-se da cadeira, esfregando as mãos com entusiasmo.
“Excelente. Excelente primeiro dia. O que leio desta mesa é paixão, Patrícia.” Ela sorriu para a diretora. “Patrícia, o show é instigante, e o elenco está respirando. Agora, vamos começar a sujidade. Música e movimento.”
Ela fez um gesto para que a equipe técnica começasse a limpar a mesa. A grande sala de ensaios seria transformada em um estúdio improvisado nas próximas horas.
“A partir de amanhã, o ritmo muda. Vamos focar em cenas chaves, onde a transição do drama para o musical é crucial. E, falando em transição crucial,” Patrícia fez uma pausa dramática, olhando diretamente para Hessoo e Lúcia, “vamos começar com o clímax do primeiro ato: A Cena do Tribunal. O ‘Tango de Tribunal’.”
Um murmúrio excitado percorreu a sala. A cena era notória. No filme original, era o momento em que o drama se quebrava, dando lugar a uma sequência de dança expressionista que, de forma estranha, representava a lógica distorcida da defesa.
Patrícia continuou, sua voz baixa, mas carregando a autoridade de uma maestrina. “Eu não quero coreografias perfeitas ainda. Eu quero testar a *energia* da cena, a transição abrupta do desespero de G para a entrada grandiosa e um tanto quanto absurda de Miranda. E o subsequente caos musical.”
Hessoo acenou com a cabeça. Essa era a parte que ele amava. O desafio formal, a junção do drama com a dança de vanguarda que lhe era tão familiar.
“Estrutura,” Patrícia indicou para o centro da sala, que agora estava vazia. “Temos aqui uma marcação básica de Juiz, testemunha, e a gaiola de réus. Hessoo, você estará sob a luz branca, no desespero de G. Lúcia, você entra pelos fundos, luz azul. Sua interrupção tem que ser um golpe de karatê, Lúcia. Preciso de força, teatralidade, e um desespero quase cômico.”
Lúcia, a atriz que interpretava Miranda, a advogada, ajeitou-se. “Absolutamente, Patrícia. Miranda não pede licença, ela toma o palco.”
Patrícia sorriu, satisfeita com a resposta. “Exatamente. E o resto do nosso elenco de apoio – atores que fazem detentos, funcionários do tribunal – vocês são o coro de consciência caótico. Quando Miranda começar seu monólogo, a cena se transforma em um pesadelo coreografado. Vocês entrarão no ‘Tango de Tribunal’.”
A diretora se virou para Hessoo e explicou a estrutura do teste. Ele estaria defendendo-se do Juiz (representado por Arthur, o designer de iluminação, que agora estava sentado em uma cadeira alta, rindo da seriedade da situação), quando Miranda o interromperia para iniciar o número musical.
“Hessoo, vamos começar com a sua fala final de apelo, antes da interrupção. Aquele desespero onde G está prestes a desmoronar, Patrícia, mas ainda tentando mentir de forma convincente.”
Hessoo fechou os olhos por um momento, chamando o sentimento. O ego ferido de G. O medo de ser pego, mas a arrogância de ser mais esperto que a lei.
O ensaio começou de forma crua, como Patrícia havia pedido. Sem figurino, sem música completa, apenas a luz de palco improvisada. Arthur, no papel de Juiz, tinha um roteiro com falas básicas de inquisição, mas o foco estava em G.
Hessoo, como G, iniciou a cena. Ele se moveu para o centro, seus ombros ligeiramente curvados, as mãos apertadas ligeiramente à frente do corpo, uma postura que gritava repressão.
“Excelência,” a voz de Hessoo, já na tonalidade de G, era tensa, mas controlada. “É um absurdo. Um ultraje. Meu marido, Carlos, morreu. Sim. Um trágico acidente. Ele estava em desespero, Juiz. Ele—ele estava descontrolado. Ele pulou. Eu não o empurrei. Eu jamais seria capaz. Não há prova forense, não há testemunha. Há apenas a dor de uma perda incalculável de um homem que eu amei, e uma acusação vil baseada em suposições infundadas.”
Hessoo injetou a dose exata de falso fervor na voz. A defesa de G era baseada em semiverdades, e a atuação precisava transmitir essa camada adicional de mentira sutil por trás da dor.
Patrícia assentiu, indicando que a emoção estava correta. Mas o ensaio visava a transição.
De repente, Lúcia, como Miranda, apareceu na lateral do palco improvisado. A transição da luz branca focada em Hessoo para uma luz azulada e dramática que a acompanhava foi quase instantânea, graças a Arthur, que estava se divertindo com o controle de iluminação.
Miranda agiu exatamente como Patrícia queria: um golpe de karatê visual.
“Basta, G!” A voz de Lúcia era aguda, cortante, atravessando a sala. Ela avançou em direção a Hessoo, gesticulando de forma exagerada para que ele parasse de falar e recuasse.
Hessoo parou no meio da frase, a surpresa de G parecendo genuína, embora fosse ensaiada. O momento de choque era crucial; G perdia brevemente o controle da narrativa.
Miranda continuou seu avanço, tomando o centro do palco.
“Excelência! Com a devida deferência... ou a falta dela, o que importa? A acusação baseia-se em um pressuposto ridículo! ‘Ele o fez por ciúmes!’ ‘Ele o fez por ódio!’ Parem com o melodrama barato! Meu cliente, G, é a vítima de uma narrativa mal contada!”
Lúcia estava em seu elemento, declamando o monólogo da advogada com a grandiosidade pedida pelo espetáculo. Era um discurso de cinismo elevado, onde Miranda argumentava que Carlos, o falecido, havia "pulado na faca" — uma metáfora para a autodestruição descontrolada — e que G era apenas um observador inocente.
“Carlos pulou na faca. Ele estava pronto para isso! E por quê? Porque ele era um homem de paixões desmedidas, de impulsos vulgares! A lógica da acusação é falha! Querem culpar G por uma dança de morte que não foi ele quem orquestrou! Querem prender um homem elegante e reservado, apenas porque ele não corresponde ao ideal moral da promotoria!” Lúcia girava no palco, seus braços abertos em um gesto de desafio à lógica.
No auge do monólogo, Patrícia gritou: “Luz de palco, Arthur!”
A luz sobre Hessoo, que estava apenas à margem, foi substituída por uma luz de palco direcionada – o ponto de transição real para a sequência musical. Era um sinal para todo o elenco de apoio que o Tango de Tribunal estava começando.
Outros atores escalados como detentos e funcionários, que estavam à espera nas laterais, moveram-se. Eles eram um grupo heterogêneo; alguns bailarinos experientes, outros, apenas figurantes. A ideia era que eles aparecessem como sombras distorcidas de consciência, representando o julgamento popular e o caos mental de G.
Eles se posicionaram na retaguarda de Miranda (Lúcia), esperando Patrícia dar o comando para a coreografia.
Miranda continuava seu monólogo grandioso. "Vocês veem a tragédia, eu vejo a poesia. Vocês veem o assassinato, eu vejo um acidente coreografado pelo destino!"
E então, o caos.
Patrícia deu o sinal. “Ação! Eu quero desorganização! Metrônomo quebrado!”
Embora a coreografia final fosse ser precisa, a ideia de Patrícia nesse ensaio era liberar a energia bruta e o humor negro da cena.
Os detentos e atores de apoio iniciaram a tentativa do que viria a ser o ‘Tango de Tribunal’. A música ambiente, que era apenas um ritmo batucado por Clara, não ajudou muito. A dança era uma mistura de passos de tango mal executados, movimentos exagerados, e expressões faciais que deveriam ser de julgamento, mas pareciam mais de deboche.
Um dos atores de apoio, que deveria fazer um giro dramático enquanto Miranda falava sobre “tragédia”, tropeçou visivelmente nos próprios pés, quase caindo sobre um dos detentos. Ele se recuperou rapidamente, mas soltou uma risada nasalada que quebrou o ambiente de suspense.
Os detentos deveriam formar uma linha semicircular, movendo os quadris em sincronia, representando a sensualidade perversa do tango. No entanto, eles estavam claramente desorientados. Um deles começou a contagem em voz alta. “Um, dois, três... não, espera, era no quatro!”
O riso começou. Primeiro, contido, depois se espalhando como um contágio. A visão de dez homens tentando executar movimentos sensuais e dramáticos com a coordenação de um grupo de pinguins em patins era genuinamente hilária.
Eles começaram a rir descontroladamente, tropeçando nas falas dos sussurros coreografados e nos movimentos. O caos era tanto que o que deveria ser um momento de tensão dramática virou uma comédia física involuntária.
Lúcia, no auge de seu discurso sobre a “poesia” da tragédia, estava irritada. Ela parou, virou-se ligeiramente para trás e lançou um olhar de reprovação que poderia congelar o Saara para os atores de apoio. Sua determinação em manter a cena era admirável, mas o pandemônio por trás dela era forte demais.
“—um acidente *coreografado* pelo destino!” Lúcia quase gritou, tentando sufocar o barulho dos risos e dos passos errados. Ela continuou seu monólogo, ignorando ativamente o cenário de comédia que se desenrolava. Era Miranda defendendo G no tribunal; Lúcia defendendo sua performance no ensaio.
Hessoo, à margem, tentou manter o desespero de G. Ele havia se retirado para a penumbra, como o personagem o faria, observando o circo de sua própria defesa. Ele mordeu o lábio para tentar suprimir o riso que ameaçava sair. A cena era para ser intensa, mas a realidade do teatro improvisado era inegavelmente cômica. *Eu sou G. Eu sinto o peso da acusação*, ele disse a si mesmo. *Este circo me irrita. Mantenha a expressão.*
Ele viu César (o ator), que estava na lateral observando a cena (o personagem César não estava no tribunal, mas o ator César estava observando para a próxima cena), com a mão sobre a boca, rindo silenciosamente. Seus olhos encontraram os de Hessoo. Havia uma cumplicidade momentânea na diversão do caos. Uma pequena faísca de conexão fora do texto. Hessoo assentiu brevemente, reconhecendo a situação, mas rapidamente se recompôs.
O profissionalismo de Hessoo não permitiria que ele sucumbisse à histeria geral. Em vez de rir ou se frustrar com a falta de sincronia que Lúcia havia mencionado no dia anterior, ele usou o momento para um tipo de ensaio silencioso.
Ele se afastou um pouco mais da ação central, caminhando até um espelho de corpo inteiro que ficava na lateral da sala de ensaios. Era o espelho usado pelos dançarinos para checar a postura.
Enquanto Lúcia continuava a berrar sobre a inocência de G, e os detentos se desequilibravam no que deveria ser um dramático *gancho*, Hessoo usou o reflexo.
Ele viu G através do vidro. O cabelo desgrenhado de ansiedade, os olhos ligeiramente arregalados, a boca comprimida em uma linha fina de contenção. Ele ajustou a expressão facial. Isso era o que G veria—o caos, o circo, e sua própria imagem refletida em meio ao pandemônio. Ele precisava que a angústia de G fosse visível, mas contida, um vulcão prestes a explodir, mas amordaçado pelas convenções e pela sua própria natureza controladora. O pandemônio dos detentos era apenas ruído de fundo para o verdadeiro drama interno.
Hessoo analisou a curva da sobrancelha, inclinou a cabeça ligeiramente, encontrando o ponto exato onde a preocupação e a indiferença se cruzavam. O trabalho estava em andamento. Impecável. Exato. G.
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