Chapter 1: Luzes, Câmera... G!
Hessoo ajustou a gola do blazer, um nervosismo estranho borbulhando no estômago. Não era um nervosismo de estreia, aquele frio na barriga bom, mas sim uma sensação de estar sendo inspecionado sob um microscópio. Era o primeiro ensaio de leitura do musical, e, para ele, parecia mais uma audiência pública na qual precisava provar seu valor mais uma vez.
A sala de ensaios no teatro parecia abarrotada. Havia uma mesa imensa, coberta de roteiros, canetas e garrafas d’água, e ao redor, o elenco completo e a equipe de produção. Hessoo era o último a chegar – pontual, claro, mas a sensação era que todos já estavam posicionados, esperando apenas o protagonista.
Ao entrar, sentiu imediatamente o peso dos olhares. Hessoo não era um novato, longe disso. Seu nome já vinha com um certo peso no circuito de teatro experimental e dança expressiva. Ele tinha uma reputação de intensidade, de se entregar de corpo e alma aos papéis. No entanto, aquele musical era um passo gigantesco em sua carreira: um suspense glamoroso ambientado nos anos 50, com ares de superprodução da Broadway, e ele, Hessoo, estava no papel principal, o complexo e sedutor ‘G’.
Ele forçou um sorriso profissional, tentando ignorar a leve umidade nas palmas das mãos. Os cumprimentos foram rápidos, a maioria já o conhecia de nome, pelo menos. A diretora, Patrícia, uma mulher de energia contagiante e cabelos prateados desordenados, apontou para uma cadeira vaga na cabeceira da mesa.
"Hessoo! Sente-se, querido. Estávamos só esperando a estrela," ela disse, com um tom que era meio elogio, meio brincadeira.
Ele murmurou um agradecimento e se dirigiu à cadeira. No processo, seus olhos encontraram os de um homem sentado quase de frente para ele. Um homem alto, de barba rala e olhos curiosos. Esse era o ator escalado para interpretar César, o amante proibido de G.
Hessoo sentiu um *déjà vu* estranho. Ele já esperava o encontro, mas a proximidade física, somada à intensidade do olhar, o desestabilizou por um microssegundo.
O personagem, César, era um pilar central na trama. O musical detalhava o envolvimento de G, casado com Carlos, em um tórrido e perigoso triângulo amoroso. César era o catalisador da derrocada de G, o risco pelo qual G estava disposto a perder tudo.
Hessoo estendeu a mão, tentando ser casual. "Hessoo, prazer."
O homem sorriu, um sorriso aberto que parecia genuinamente divertido. "Prazer, Hessoo. Eu sou César."
Hessoo piscou, forçando a mente a processar. Ele sabia do nome. Claro que sabia. Mas ouvir de repente, naquela introdução formal, soava inacreditavelmente seco e embaraçoso.
"Ah, claro. O outro César," Hessoo respondeu, com uma ponta de humor na voz, mas sentindo o rubor subir-lhe às faces. Ele odiava clichês, e aquilo parecia a cena de abertura de uma comédia de erros barata.
O ator César deu uma risada baixa, concordando com a cabeça. "Sim. O ator César. Uma tragédia grega, eu sei. Eu já estou acostumado com os trocadilhos."
Patrícia, a diretora, bateu palmas para chamar a atenção. "Maravilha! Já que todos se conhecem—e sim, o universo tem um senso de humor peculiar — podemos começar? Eu quero sentir a energia dessa sala. Queremos que 'G's Dilemma' seja um espetáculo visceral."
Hessoo pegou seu roteiro, o cheiro de papel novo e tinta fresca invadindo suas narinas. O roteiro era grosso, cheio de anotações e marcações de cena. Enquanto Patrícia fazia um discurso de abertura sobre a importância do projeto e a visão artística, Hessoo tentava se concentrar, mas sua mente estava estranhamente dividida.
Ele estava G. G era um homem elegante, mas atormentado, preso entre o dever conjugal e uma paixão avassaladora por César. Esta paixão precisava ser crível, palpável. Isso exigia uma química imediata com o ator sentado à sua frente.
Hessoo furtou um olhar para César; ele estava concentrado nas páginas, suas sobrancelhas franzidas levemente, talvez em antecipação. Ele parecia ter a intensidade na medida certa, um contraponto interessante à sua aura inicial de simpatia. *Ótimo*, pensou Hessoo. *Facilita meu trabalho.*
A mesa de leitura começou com as apresentações formais dos personagens. Quando chegou a vez de Miranda, a advogada de G, todos se viraram. A atriz, Lúcia, era bem conhecida por seus papéis dramáticos na televisão, e exalava uma confiança serena.
Lúcia ajeitou os óculos na ponta do nariz e sorriu, um pouco presunçosa, Hessoo notou.
"Bem, eu sou Lúcia, e farei Miranda, a advogada de G. Sinceramente, eu amo essa história. Eu assisti ao filme original, o 'Judge' de 1957, umas dez vezes. O musical é baseado nele, certo? O suspense é incrível. Mas o que mais me impressionou no filme foi a precisão técnica necessária para que tudo funcionasse."
Lúcia fez uma pausa e gesticulou com as mãos, enfatizando o ponto. "Principalmente as coreografias de cena e a transição entre o drama e as sequências musicais. Em 'Judge', o G e o César, nas cenas de dança, tinham uma sincronização absurda. Era quase hipnótico. Se a gente não atingir essa mesma precisão aqui, a história perde a força. É um musical que exige sincronia, Patrícia."
Um silêncio momentâneo pairou sobre a mesa. Hessoo sentiu o peso da expectativa aumentar. Ele era o dançarino, o especialista em movimento. Lúcia, com sua observação um tanto óbvia, parecia ter colocado a barra ainda mais alta.
Patrícia, porém, sorriu de forma maternal. Ela sabia exatamente onde Lúcia estava mirando, e talvez fosse um ponto válido para a equipe técnica.
"Lúcia, sua descrição é perfeita. E você tocou exatamente no ponto crucial," Patrícia começou, sua voz cheia de autoridade suave. Ela olhou diretamente para Hessoo, e o restante da mesa seguiu seu olhar. Hessoo tentou manter uma expressão neutra, mas por dentro, sentiu um alívio misturado à pressão.
"E é por isso, Lúcia, que escolhemos Hessoo para G," Patrícia continuou, a satisfação evidente em seu tom. “Hessoo não é apenas um ator dramático brilhante. Ele é, antes de tudo, um mestre da dança expressiva. O corpo dele fala, e ele entende a sincronização visual e emocional como poucos. Ele não vai apenas atuar; ele vai *encarnar* G, com a precisão exigida pelos anos 50 e a intensidade que o suspense da trama pede.”
Hessoo sentiu-se ligeiramente inchado de orgulho, mas tentou se concentrar na responsabilidade implícita. Ele notou que alguns membros do elenco concordavam com a cabeça.
Patrícia então fez um gesto abrangente para alguns membros da equipe e do elenco.
"Na verdade, Hessoo, não é a primeira vez que você trabalha com a gente, de certa forma. Não é, Arthur?"
Arthur, o designer de iluminação, um homem sério e de óculos grossos, deu um aceno de cabeça. "Trabalhamos juntos no 'Orquestra de Sombras', ano passado. A exigência corporal ali era insana. Se tem uma coisa que o Hessoo sabe fazer é ser exato com o movimento."
Depois foi a vez de Mário, um dos dançarinos de apoio que faria pequenos papéis. Mário sorriu e fez um sinal de 'joinha' para Hessoo. "Eu fiz um workshop de improviso com o Hessoo há uns cinco anos. Cara, quando ele entra no fluxo, é como assistir a tempo real.”
Era confortante ser reconhecido pelo trabalho duro, mas Hessoo sentiu a responsabilidade esmagadora. Ele esperava que a exigência fosse alta, mas as menções ao filme original e a sua própria reputação pareciam selar o contrato: ele precisava ser impecável. A precisão, a sincronização, a entrega... tudo tinha que ser G.
Hessoo olhou para o roteiro, sentindo a necessidade de anular qualquer distração. Ele não podia falhar com a equipe, e mais importante, não podia falhar consigo mesmo. A fama de perfeccionista não era à toa. Ele tinha a necessidade visceral de ser o melhor, de extrair a essência pura de seu personagem.
A diretora musical, Clara, uma mulher pequena com um senso de humor afiado, pigarreou. "Bem, com toda essa precisão e sincronização em mente," ela disse, olhando diretamente para Hessoo com um brilho nos olhos, "sugiro que comecemos com a leitura. Eu quero ouvir G, Carlos e César. É a trindade que move essa história. Vamos dar vida ao roteiro.”
Hessoo respirou fundo, abriu o roteiro na primeira página e se preparou para mergulhar no mundo sombrio e glamouroso de G. Ele ignorou a presença de César, o ator, ao lado, focando apenas nas palavras, na cadência, no nascimento daquele homem complexo que ele teria o trabalho de dar vida. O mundo exterior, por enquanto, tinha que desaparecer. O trabalho estava apenas começando.
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