Capítulo 14: A Raiz Clara e a Canção Interrompida
Vlad continuou a segurar o comunicador criptografado, a prata da capa refletindo fracamente a luz da lâmpada de halogênio que projetava sombras nervosas na garagem. Matt sentiu o peso daquele pequeno objeto. Não era apenas um telefone; era a ponte direta para a operação, ignorando Stacy, o que significava que Vlad estava confiando em seu juízo acima de qualquer supervisão.
Matt pegou o aparelho com relutância, sentindo o contato frio do metal contra a ponta de seus dedos. Ele digitou lentamente o número de um celular descartável que ele usava apenas para interagir com fontes muito específicas de equipamentos de laboratório obscuros. Era o número que o ligava ao submundo da tecnologia proibida, um número que nem mesmo seu advogado conhecia. Ele o entregou de volta a Vlad.
“É esse,” Matt disse, a voz monossilábica. Ele observava Vlad enquanto o homem copiava o número com uma precisão cirúrgica, quase como se estivesse gravando aquilo em sua memória celular, não apenas no aparelho.
As últimas duas semanas tinham sido estranhas. Vladmir, diferente de qualquer um dos outros contatos que Matt já tivera no mundo do crime — que sempre vinham com um ar de superioridade agressiva ou subserviência forçada —, havia se aninhado na periferia da vida de Matt com uma calma perturbadora. Ele não forçava a barra, mas também não desaparecia.
Seus “conselhos pessoais” eram, na verdade, inserções calculadas de experiência de campo que Mello, sempre preso à teoria, nunca teria adquirido. Vlad parecia genuinamente interessado em pavimentar o caminho para a queda de César e Mello, mas o fazia com um respeito quase clínico pelo processo intelectual de Matt. Ele não questionava a lógica dos *crashes* simulados em Zurique, apenas perguntava sobre a estabilidade do *firewall* da rede de criptomoedas, como se fossem colegas de doutorado discutindo um artigo complexo.
“Você está sendo um bom parceiro, Vlad,” Matt admitiu, tirando o casaco de couro um pouco mais confortavelmente. A proximidade de César estava faltando, claro, mas a ausência de pressão para manter o teatro de normalidade com ele permitia que Matt focasse melhor na construção da armadilha.
Vlad sorriu, um movimento sutil que tornava seus traços, geralmente severos, quase gentis. Foi nesse momento, sob a luz crua do teto da garagem, que Matt percebeu algo de forma mais clara do que antes. A luz parecia penetrar um pouco mais fundo em seu cabelo espesso.
A raiz.
Aparentemente, o cabelo de Vladmir era significativamente mais claro sob a luz artificial e forte do que nas penumbras de um beco ou nas meias-luzes de um restaurante de esquina. Era um loiro dourado, contrastando com o restante do cabelo escuro que ele mantinha impecavelmente penteado para baixo. Um detalhe irrelevante que, para a mente de Matt, subitamente abriu uma pequena janela de contextualização sobre a dualidade do homem, a dualidade que ele elogiava em César: o disfarce sob a formalidade.
E, parado ali, ele parecia imponente. Sua altura, sempre notável, parecia ainda mais exacerbada quando ele se mantinha completamente ereto, sem a postura curvada que assumia enquanto escrevia ou se inclinava sobre os diagramas. César era musculoso para a idade, mas Vladmir parecia construído por anos de treinamento de combate pesado, a estrutura sob o terno italiano densa e inconfundível.
“O plano se solidificou, Matt,” Vlad disse, ignorando o elogio, voltando ao foco. “A posse do império ocorreu. César e Mello estão em São Petersburgo ou talvez Moscou agora, lidando com os conselheiros mais turbulentos. A transferência de Sasha foi limpa, mas a fragilidade dele será a nossa janela.”
“Limpa demais,” Matt murmurou, coçando a cicatriz no lado do rosto com o indicador. “Sasha é um velho predador. Ele não faria isso a menos que sentisse o chão ceder sob seus pés. E César, apesar de toda a sua beleza e músculos, é inexperiente em gerir um parasita tão grande.”
“Exatamente por isso o *timing* é vital. Sua queda será mais rápida se começarmos o ataque enquanto eles ainda estão validando a sucessão, enquanto o nervosismo está alto,” Vlad argumentou. “O *crash* suíço precisa ser no meio da próxima semana. O *dump* em Nice logo depois. Eles estarão ocupados demais tentando provar a estabilidade de César para o conselho.”
Matt considerou isso. Era uma jogada limpa. No orfanato, ele sempre planejava como vencer Mello; agora, ele planejava como expor César no momento em que ele tentava desesperadamente provar seu valor, enquanto Mello estaria ocupado tentando cobrir o rastro lógico de César. A projeção de falha seria inevitavelmente transferida para Mello, o arquiteto, como Matt havia insistido.
“Eu não vou para a Rússia agora,” Matt declarou, a decisão cortando o ar da garagem.
Vlad parou de examinar a caixa de macarrão instantâneo que ele trouxera no dia anterior. Ele se virou lentamente, e aquela calma externa pareceu sofrer uma micro-fratura.
“Não?”
“Não, eu ainda não confio em você para orquestrar a fase inicial no campo,” Matt respondeu, mantendo o tom neutro. Ele realmente não confiava. Vlad era um instrumento útil, mas sua lealdade final era para seu próprio sangue ou para quem lhe oferecesse o melhor negócio a longo prazo. Matt estava executando a vingança, mas precisava garantir que o resultado fosse a ruína de Mello, não apenas a ascensão de César sob as asas de Vlad. “Você é bom no planejamento estratégico de campo, no logística bruta. Mas o elemento surpresa… a maneira como Mello pensa… eu preciso estar lá para monitorar a reação dele especificamente. Se eu confiar a você a execução em Nice, se for necessária uma correção de curso imediata, a distância será fatal.”
Vlad permaneceu em silêncio por um longo momento, seus olhos cinzentos quase desaparecendo em seu complexo rosto albino. Ele parecia digerir a rejeição, não como uma ofensa pessoal, mas como um risco operacional.
“Eu esperava que você viesse,” Vlad admitiu finalmente, sua voz carregada por uma decepção palpável, embora ele tentasse neutralizá-la com formalidade. “Teria sido mais eficiente ter você ao meu lado para lidar com qualquer complicação com os contatos locais de Sasha, ou para garantir que as pessoas certas no *compliance* suíço entendam a seriedade da situação.”
Ele deu um passo para trás, recuperando sua compostura rapidamente. Isso era negociação, não amizade. A recusa de Matt era um obstáculo, não um rompimento.
“Não me entenda mal, Matt. Eu aprecio a precisão que você traz. Você é a arma mais afiada que eu poderia desejar contra eles. Mas eu não vou forçar isso.” Vlad balançou a cabeça. “Se você precisa de tempo para se sentir confortável com a minha capacidade de seguir protocolos rigorosos, eu vou esperar. O império de Sasha não vai desmoronar em um dia, e César e Mello levarão algumas semanas para se estabilizarem totalmente após a transição.”
Ele fez uma pausa, seu olhar fixo em Matt. “Mas não demore demais. Cada dia que Mello permanece no topo, ele solidifica a posição de César. Eu estarei na Europa no fim da próxima semana, preparando a superfície para o *crash*. Eu preciso de você lá para o *dump* em Nice. Isso é inegociável. Eu posso executar o plano financeiro, mas a exposição física… essa é a sua especialidade, a que você insistiu em manter.”
Matt assentiu lentamente. A exigência de Nice era justa. Era ali que ele teria o vislumbre mais próximo da queda de Mello. Ele não poderia perder essa performance.
“Fechado,” Matt concordou. “Eu vou me mover no fim da próxima semana. Vou arranjar uma maneira de entrar no país sem criar um rastro digital que possa ser rastreado até este humilde refúgio.”
“Bom.” Vlad respirou fundo, como se tivesse acabado de encerrar uma rodada de negociação tensa. A tensão na garagem diminuiu visivelmente. “Então, já que estamos combinados para o cronograma, e considerando que estamos em território neutro, o que fazemos agora? Tentamos comer mais alguma coisa, ou há alguma peça de lógica avançada que você está guardando para me impressionar?”
Matt olhou ao redor, para a sujeira, os diagramas, o cheiro de óleo e, agora, o cheiro residual do macarrão que Vlad havia trazido. A conversa de vingança estava tecnicamente concluída, a execução ainda pendente. O ambiente estava pronto para relaxar um pouco, para o breve interlúdio humano que precedia a próxima fase do caos.
Vlad caminhou em direção à pequena sala anexa que Stacy usava como sala de estar, um espaço surpreendentemente arrumado em contraste com a garagem.
“Eu trouxe um bom vinho tinto, um Bordeaux de 2005, se você quiser experimentar algo que compense a falta de adrenalina por um momento,” Vlad ofereceu, já se dirigindo para lá. “Stacy disse que ela tinha um filme que poderíamos ver, algo antigo.”
Matt se levantou da cadeira, esticando os braços magros e tensos, sentindo a rigidez que vinha de horas curvado sobre planos. A ideia de um vinho caro parecia ridícula vindo de quem era Vlad, mas ele reconheceu o gesto: um toque de civilidade, um reconhecimento de que, mesmo no submundo, a formalidade precisava ser mantida para que a colaboração funcionasse.
Ele seguiu Vlad em direção à sala de estar. O cheiro de graxa estava sendo gradualmente substituído pelo aroma abafado de poeira e carpete antigo da casa de Stacy. Eles passaram pela porta estreita que ligava a garagem ao exterior da casa, entrando no espaço mais iluminado e suavemente decorado.
Vlad já estava testando o controle remoto da televisão antiga que Stacy mantinha ali, provavelmente por nostalgia. Matt parou no batente da porta, observando a cena. Vlad era fascinante. Alto, formal, letal, mas capaz de se adaptar a uma garagem canadense e a um acordo com um gênio vingativo.
Antes que Vlad pudesse ligar a TV ou abrir o vinho, uma perturbação repentina surgiu da cozinha. Stacy, que parecia estar concentrada em algo que preparava, interrompeu o ambiente com uma voz alta e surpreendentemente melódica. Ela não era alta como César ou imponente como Vlad, mas carregava uma presença energética que parecia preencher o espaço imediatamente.
“Ei, Matt!” Stacy gritou, saindo da cozinha, segurando um pano de prato sujo em uma das mãos e gesticulando com a outra. Ela estava cantarolando, claramente animada com a perspectiva de ter companhia masculina na casa, mesmo que um deles fosse um mafioso russo de terno.
Ela se inclinou casualmente, olhando para Matt com um sorriso maroto, e começou a cantarolar uma letra que parecia ter saído diretamente de uma rádio velha e esquecida, um som caótico que contrastava com a tensão da discussão estratégica que acabara de terminar.
“Chega mais e se distancia,” ela cantou, já fazendo um movimento como se estivesse puxando Matt para perto e o empurrando para longe ao mesmo tempo, imitando a ambivalência calculada do relacionamento com Mello. Então, ela olhou diretamente para ele, os olhos brilhando com um tipo de zombaria afetuosa que só se dava a alguém perigosamente próximo.
“Eu conheço essa cara,” Stacy cantarolou mais alto, marcando o ritmo com os pés no chão da sala, “Essa fala, esse cheiro... Essa tara de louco... Esse fogo, esse jeito!”
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