❄️ CAPÍTULO 7 — A CASA NA NEVE E O PRIMEIRO ENCANTO
Quando Mello abriu os olhos, por um instante pensou que ainda estava na floresta congelada — mas o teto acima dele não era o céu carregado de neve. Era de madeira clara, lisa, com marcas antigas de machado e um brilho quente refletindo a luz suave de uma lamparina.
O calor.
Era isso que o confundia.
Seu corpo, sempre tão frágil ao frio, estava aquecido demais. As peles que o cobriam tinham cheiro de lenha, couro e algo metálico… talvez sangue seco de algum animal que havia sido caçado recentemente.
Ele se ergueu devagar, o corpo ainda pesando como pedra. O coração bateu mais rápido quando seus olhos encontraram o espelho encostado na parede. Ele se aproximou lentamente, quase vacilando.
Seu reflexo o encarou — pálido, abatido, mas vivo.
O choque veio segundos depois:
seu cabelo, antes longo até a cintura, agora caía apenas um pouco abaixo dos ombros, torto, irregular, marcas claras de cortes apressados.
Mello levou a mão aos fios mais curtos, lembrando-se da navalha, do medo, do desespero de deixar um rastro. Um nó formou-se em sua garganta.
— Você não deveria estar de pé ainda.
A voz veio da porta.
Mello virou-se tão rápido que quase caiu.
O homem que o havia encontrado na mata — o gigante albino, a criatura gélida que parecia esculpida pela própria nevasca — estava parado ali, apoiado no batente como se fosse parte da casa. Agora, sem a luz traiçoeira da floresta, sua aparência era ainda mais deslumbrante.
Cabelos completamente brancos, quase brilhantes.
Pele clara demais, mas saudável.
Olhos tão frios que lembravam gelo comprimido.
E um porte físico… imponente. Assustador. Belo.
Ele segurava uma tigela com uma das mãos grandes, como se fosse nada.
— Sente-se — disse ele, apontando para a mesa no pequeno espaço que servia como cozinha.
A voz não era dura. Era firme, segura, mas havia nela uma nota de gentileza inesperada.
Mello engoliu em seco, caminhando com cuidado até a mesa. A cozinha era simples: fogão de ferro, panelas de cobre penduradas, um tapete velho cobrindo o chão áspero, cortinas desbotadas. Mas sobre a mesa… peças de prata. Um contraste chocante.
Riqueza e pobreza misturadas.
Força e delicadeza no mesmo lugar.
Assim como o homem diante dele.
— Meu nome é Karl — disse ele, sentando-se à frente de Mello. — Mas no exército… me chamam de César.
César.
O nome parecia pesado, como uma coroa colocada à força.
Mello baixou os olhos, uma reverência automática escapando de seu corpo treinado.
— Obrigada por… — ele hesitou no feminino — por me salvar. Eu… eu teria morrido lá fora.
— Eu sei — César disse simplesmente.
Mello ergueu os olhos devagar. Havia um leve sorriso no canto da boca dele. Não era zombaria. Era… apreciação. Como se estivesse analisando uma obra de arte diante de si.
— Coma — César empurrou a tigela. — Você está fraca demais.
Mello sentiu o rosto esquentar. O feminino ainda o atravessava, e doía, mas ele precisava mantê-lo. Por sobrevivência, por hábito, por poder.
— Qual é o seu nome? — César perguntou, ainda observando-o com aquele olhar que parecia atravessar pele, memória e alma.
Mello abriu a boca e, por reflexo, respondeu:
— Aimee.
O nome falso saiu tão natural que até ele se assustou.
César aceitou com um aceno, mas seus olhos afiados pareciam dizer: Ainda vou descobrir o que há por trás.
Mello levou a tigela aos lábios. Era caldo quente, cheiro forte de carne e ervas, muito diferente da comida racionada do acampamento russo. O calor desceu pela garganta como um abraço.
— Você não tem pressa de voltar ao acampamento? — César perguntou, comendo devagar, como se estudasse cada reação de “Aimee”.
Mello hesitou. Pensar em Nyon, Dimitri e Boris mexia com ele. A culpa. A necessidade de servir. A sensação de pertencimento temporário. Mas…
Mas a lembrança do espião chinês gritando seu nome falso, cuspindo a sentença cruel que o irmão teria preferido encontrá-lo morto — aquilo ainda ardia. Como gelo queimando a pele.
E agora, sentado numa casa quente, diante de um homem que não parecia vê-lo como peso… a resposta saiu quase sozinha.
— Não… não tenho pressa.
César sorriu com o canto da boca, satisfeito.
— Eu imaginei.
Ele se recostou na cadeira e, pela primeira vez, Mello sentiu o coração pular dentro do peito. Era a primeira vez que alguém interpretava sua resposta emocional, não apenas suas palavras. A primeira vez que alguém parecia… interessado.
O calor que subiu por seu rosto era irritante. Idiota. Insuportável.
Mas César viu.
E gostou.
— Você olha para mim como se eu fosse te machucar — ele disse, voz baixa, quase divertida. — E, ao mesmo tempo… como se estivesse curiosa.
Mello travou.
Como ele podia ser tão direto?
César apoiou os braços na mesa, aproximando-se. A sombra dele cobriu parte do rosto de Mello, e mesmo assim ele não conseguiu olhar para longe.
— Não precisa ter medo de mim, Aimee — a voz era profunda, quente de um jeito estranho. — Se eu quisesse te ferir… já teria feito.
Mello respirou fundo, tentando recuperar o controle, mas seu rosto estava em chamas. Seus pensamentos, embaralhados. Seu poder, quieto. Era como se César fosse uma tempestade silenciosa, prestes a puxá-lo para dentro.
— Descanse mais — César se levantou. — Depois conversamos.
Ele deu alguns passos, mas parou na porta, olhando por cima do ombro.
— Ah… e cuidado.
— Cuidado? — Mello ecoou, confuso.
César sorriu como quem sabe mais do que deveria.
— Você é mais valiosa do que parece. Gente como você… desaparece fácil durante a guerra.
E saiu.
Mello ficou sozinho, ouvindo o estalar da lenha queimando. O calor parecia quase agressivo em comparação com a noite gelada lá fora. Seus pensamentos corriam como água.
César sabe algo?
Ou apenas me vê como uma garota perdida e bonita?
Por que meu coração fez isso quando ele falou comigo?
Quando ele baixou os olhos, percebeu algo sobre a mesa.
Um fio branco.
Um fio de cabelo dele?
Não.
Não era dele.
Era de César.
E brilhava como neve ao sol.
Ele segurou o pequeno fio entre os dedos.
E sem entender por quê… sorriu.
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