Capítulo 1: O Nosso Símbolo
Sebastian olhou para o documento à sua frente. Ele piscou três vezes tentando focar as letras que dançavam no papel. Não adiantou. Ele esfregou os olhos com a base das palmas e tentou novamente.
O relatório descrevia uma intervenção que a terceira divisão tinha feito numa rebelião no sul. Sebastian recordou o evento. Um grupo de fazendeiros tinha decidido não pagar os impostos alegando que o rei não protegia suas terras contra bandidos. Sebastian tinha enviado cinquenta homens que resolveram a situação em dois dias sem derramamento de sangue. Uma vitória simples.
Ele voltou a olhar para o documento. As palavras ainda embaçavam. Sebastian passou a mão pelo rosto e se recostou na cadeira. Quantas noites já tinha passado sem dormir? Cinco? Seis? Ele não conseguia lembrar.
A vela na mesa queimava baixa. Sebastian olhou pela janela do escritório e viu apenas escuridão. Deviam ser três da manhã, talvez quatro. Ele tinha começado a ler relatórios logo depois do jantar, e desde então não tinha parado.
Sebastian pegou outro documento da pilha à sua direita. A pilha parecia não diminuir nunca. Cada dia chegavam mais relatórios, mais pedidos, mais decisões que precisavam ser tomadas. Ele era o general mais jovem do país, e todos esperavam que ele resolvesse tudo.
Ele voltou ao primeiro relatório. Forçou os olhos a focarem. Leu linha por linha, palavra por palavra. O soldado que tinha escrito o texto descrevia como encontraram os líderes da rebelião. Como negociaram. Como chegaram a um acordo. Tudo muito formal e correto.
Sebastian chegou ao terceiro parágrafo. O texto mencionava o símbolo da divisão - uma caveira com espadas cravadas nela. Sebastian tinha desenhado aquele símbolo pessoalmente três anos atrás. Cada divisão tinha seu próprio símbolo, e ele tinha criado todos eles.
Continuou lendo. O soldado citava a frase que estava escrita nos uniformes da divisão: "Progresso e justiça que não se abalam".
Sebastian parou.
Ele leu a frase novamente.
O soldado tinha escrito "abalam" com dois "l". E "progresso" com "ç".
Sebastian sentiu algo queimar no peito. Ele olhou fixamente para as palavras escritas de forma errada. Progrecço. Abalan. As letras pareciam gritar para ele do papel.
Ele colocou o documento na mesa. Respirou fundo. Fechou os olhos.
Aquela frase estava nos uniformes de todos os soldados da terceira divisão. Estava na bandeira. Estava nos escudos. E aquele imbecil tinha escrito errado.
Sebastian abriu os olhos. Pegou o documento novamente. Verificou o nome do soldado que tinha assinado o relatório. Marco Ferreira. Terceira divisão, terceiro pelotão.
Ele se levantou da cadeira. A tontura veio imediatamente. Sebastian segurou na borda da mesa e esperou o mundo parar de girar. Quando conseguiu se equilibrar, caminhou até a porta.
Saiu do escritório. O corredor estava vazio e silencioso. Sebastian caminhou com passos rápidos. Cada passo ecoava nas paredes de pedra. Ele descia a escada em direção aos dormitórios dos soldados quando mudou de ideia. Marco provavelmente estaria no refeitório tomando café da manhã. Os soldados do turno da noite sempre comiam antes de dormir.
Sebastian virou à esquerda e seguiu em direção ao refeitório. Podia ouvir vozes e risos vindos dali. Empurrou a porta dupla e entrou.
O refeitório estava cheio. Devia haver uns quarenta soldados sentados às mesas compridas comendo pão e tomando chá. Alguns olharam para Sebastian quando ele entrou, mas a maioria continuou conversando.
Sebastian parou no meio do refeitório. Olhou ao redor procurando Marco Ferreira. Não o reconheceu imediatamente.
Ele caminhou até a mesa mais próxima. Um soldado de cabelo preto comia sopa.
"Onde está Marco Ferreira?" Sebastian perguntou.
O soldado apontou para uma mesa no canto direito. "Ali, general."
Sebastian virou. Viu um rapaz loiro sentado de costas conversando com outros três soldados. Todos pareciam estar se divertindo com alguma piada.
Ele atravessou o refeitório. As conversas foram diminuindo à medida que os soldados percebiam sua presença. Quando Sebastian chegou perto da mesa de Marco, o refeitório estava quase em silêncio.
Marco ainda não tinha notado. Ele ria de algo que outro soldado tinha dito.
"Marco Ferreira." Sebastian disse.
O rapaz virou imediatamente. Ele tinha mais ou menos a mesma idade de Sebastian, talvez vinte e cinco ou vinte e seis anos. Parecia bem descansado.
"General." Marco se levantou rapidamente.
Sebastian olhou para ele. Marco tinha olhos verdes e um sorriso que ainda não tinha desaparecido completamente do rosto.
"Você escreveu o relatório sobre a intervenção no sul?" Sebastian perguntou calmamente.
"Sim, senhor."
"Venha comigo."
Sebastian virou e começou a caminhar de volta para o centro do refeitório. Ouviu Marco segui-lo. Todos os soldados olhavam agora. Ninguém falava.
Sebastian parou no meio do salão. Virou de volta para Marco que estava alguns passos atrás dele.
"Três dias na prisão." Sebastian disse.
Marco piscou. "General?"
"Você vai passar três dias na prisão para aprender a escrever corretamente e não envergonhar a pátria."
"Eu não entendo, senhor, eu—"
Sebastian deu dois passos à frente e agarrou a gola do uniforme de Marco. Puxou o rapaz para perto dele. Os olhos de Marco se arregalaram.
"Você não entende?" Sebastian perguntou baixo. "Vou explicar então."
Ele empurrou Marco para trás e soltou a gola do uniforme. Virou para encarar todos os outros soldados no refeitório. Eles olhavam em silêncio.
"Alguém sabe me dizer qual é a frase da terceira divisão?" Sebastian perguntou alto.
Vários soldados responderam ao mesmo tempo. "Progresso e justiça que não se abalam, senhor."
"Correto." Sebastian apontou para Marco. "Este soldado aqui escreveu um relatório oficial. Um documento que vai para os arquivos do reino. Um documento que pode ser lido pelo rei. E ele escreveu a frase da divisão dele com dois erros."
Ele fez uma pausa.
"Progresso com ç. Abalam com dois l."
Alguns soldados sussurraram entre si. Marco tinha ficado pálido.
"A frase está no uniforme dele." Sebastian continuou. "Está na bandeira que ele carrega. Está no escudo que ele segura. E mesmo assim ele não sabe escrever."
Sebastian virou de volta para Marco. "Três dias na prisão. Você vai passar esse tempo copiando a frase mil vezes até aprender."
Ele agarrou o braço de Marco e começou a puxá-lo em direção à saída. Marco não resistiu. Apenas tropeçou tentando acompanhar os passos rápidos de Sebastian.
Estavam quase na porta quando alguém falou.
"Progresso é com s, que idiota."
Sebastian parou imediatamente. Virou bruscamente. Viu um soldado baixo de cabelo castanho sentado numa mesa perto da porta. O rapaz tinha um sorriso no rosto.
"O que você disse?" Sebastian perguntou.
O soldado parou de sorrir. "Eu... eu disse que progresso é com s, senhor."
"Você acha que ele é idiota?"
"Não, senhor, eu só—"
"Venha aqui."
O soldado se levantou devagar. Caminhou até Sebastian com passos hesitantes.
"Qual é seu nome?" Sebastian perguntou.
"João Silva, senhor."
"Você sabe escrever, João Silva?"
"Sim, senhor."
"Então você não é idiota."
"Não, senhor."
"Mas você chamou seu colega de idiota."
João olhou para o chão. "Foi só uma piada, senhor."
"Uma piada." Sebastian repetiu. Ele ainda segurava o braço de Marco com a mão direita. Agora estendeu a mão esquerda e agarrou o ombro de João. "Três dias na prisão para você também."
"Mas senhor, eu—"
"Para aprender quando fazer piadas."
Sebastian começou a arrastar os dois em direção à porta. Marco tropeçou. João tentou se soltar mas Sebastian apertou o ombro dele mais forte.
"Alguém mais quer fazer comentários?" Sebastian perguntou alto olhando para trás.
Ninguém respondeu. O refeitório estava completamente silencioso agora.
Sebastian empurrou a porta com o ombro e saiu puxando os dois soldados com ele. A porta se fechou atrás deles.
O corredor estava frio. Sebastian soltou os dois e virou para encará-los.
"Andem." Ele disse.
Marco e João se olharam. Então começaram a caminhar. Sebastian seguiu atrás deles.
Caminharam em silêncio pelos corredores do castelo. Sebastian conhecia o caminho de cor. Tinha levado soldados para a prisão muitas vezes antes. Geralmente por desrespeito ou violação de ordens. Nunca por erros ortográficos.
Desceram duas escadas. Entraram num corredor mais escuro e úmido. As paredes aqui eram de pedra bruta. Não havia janelas.
Chegaram a uma porta de ferro. Um guarda estava sentado numa cadeira ao lado dela. Ele se levantou quando viu Sebastian.
"General." O guarda cumprimentou.
"Dois prisioneiros." Sebastian disse. "Três dias cada um."
O guarda pegou um molho de chaves do cinto. Destrancou a porta e a abriu. Do outro lado havia uma escada descendente.
"Desçam." Sebastian ordenou.
Marco desceu primeiro. João hesitou.
"Eu disse para descer." Sebastian repetiu.
João desceu. Sebastian os seguiu. O guarda fechou a porta atrás deles mas não trancou.
A escada levava a uma sala grande com várias celas de ferro. A maioria estava vazia. Sebastian apontou para uma no canto.
"Aquela ali."
Marco e João caminharam até a cela. Outro guarda, este mais velho, destrancou a porta. Os dois soldados entraram. O guarda fechou e trancou novamente.
"Três dias." Sebastian repetiu. "Sem visitas."
O guarda mais velho assentiu. "Sim, general."
Sebastian virou para subir as escadas. Parou. Olhou de volta para os dois soldados atrás das grades.
"Papel e pena." Ele disse para o guarda. "Para eles praticarem."
"Sim, senhor."
Sebastian subiu as escadas. Passou pelo primeiro guarda que ainda esperava do outro lado da porta. Caminhou de volta pelos corredores.
A tontura voltou. Ele parou e se apoiou na parede. Fechou os olhos. Respirou fundo várias vezes.
Quando abriu os olhos, viu que tinha colocado a mão direita sobre a parede para se equilibrar. Ele olhou para a própria mão. As tatuagens no antebraço estavam parcialmente visíveis abaixo da manga. Podia ver parte do símbolo da primeira divisão - um leão com uma coroa.
Sebastian afastou a mão da parede. Continuou caminhando.
Chegou de volta ao refeitório. Não entrou. Apenas olhou pela janela na porta. Os soldados tinham voltado a comer e conversar, mas em volume mais baixo que antes.
Ele virou e seguiu em direção ao seu escritório. Os corredores pareciam mais longos agora. Cada passo exigia esforço.
Subiu a escada lentamente. Segurou no corrimão. Contou cada degrau. Vinte e três até o segundo andar.
Entrou no escritório. A vela tinha quase acabado. Ele se deixou cair na cadeira.
O documento ainda estava lá na mesa. Sebastian olhou para as palavras erradas. Progrecço. Abalan.
Pegou uma pena e tinta. Riscou as duas palavras. Escreveu por cima corretamente. Progresso. Abalam.
Colocou a pena de volta no tinteiro. Olhou para a pilha de documentos à sua direita. Ainda havia pelo menos trinta relatórios para ler.
Sebastian pegou o próximo documento. Começou a ler. As palavras embaçavam novamente.
Ele piscou. Continuou lendo.
Três parágrafos depois, percebeu que não tinha entendido nada do que tinha lido. Voltou ao início.
Leu mais devagar desta vez. Focou em cada palavra.
O relatório era sobre uma disputa de terras entre dois nobres. A segunda divisão tinha sido chamada para mediar. Sebastian tentou se concentrar nos detalhes, mas sua mente vagava.
Pensou em Marco na cela. O rapaz parecia assustado quando Sebastian o tinha agarrado. João também.
Eram bons soldados. Ambos tinham boas avaliações. Marco especialmente era conhecido por ser dedicado e seguir ordens sem questionar.
E Sebastian tinha o colocado na prisão por três dias por causa de dois erros de ortografia.
Ele colocou o documento na mesa. Esfregou os olhos novamente.
A vela finalmente apagou. O escritório ficou escuro exceto pela luz fraca que entrava pela janela. Devia estar amanhecendo.
Sebastian se levantou. Caminhou até a janela. Olhou para fora.
O céu começava a clarear. Podia ver os jardins do castelo lá embaixo. Alguns servos já estavam acordados caminhando pelos caminhos de pedra.
Ele apoiou a testa no vidro frio da janela. Fechou os olhos.
Precisava dormir. Sabia disso. Mas se dormisse agora, acordaria ao meio-dia e perderia a reunião com o conselho militar às dez da manhã.
Sebastian abriu os olhos. Afastou-se da janela. Voltou para a mesa.
Acendeu outra vela. Pegou o próximo documento da pilha.
Começou a ler.
As horas passaram. O sol nasceu completamente. A luz entrou pela janela tornando a vela desnecessária, mas Sebastian nem notou.
Ele lia, assinava, arquivava. Um documento atrás do outro.
Às nove e meia bateram na porta.
"Entre." Sebastian disse sem levantar os olhos.
A porta abriu. Um jovem soldado entrou. "General, o conselho militar começa em meia hora."
"Eu sei."
"Posso trazer algo para o senhor? Café? Comida?"
Sebastian olhou para o soldado. O rapaz tinha talvez dezoito anos. Parecia nervoso.
"Não precisa."
"Sim, senhor." O soldado saiu e fechou a porta.
Sebastian olhou para a pilha de documentos. Ainda havia uns vinte. Não conseguiria terminar tudo antes da reunião.
Ele se levantou. Arrumou os papéis numa ordem específica. Os mais urgentes em cima. Pegou sua casaca militar que estava pendurada numa cadeira no canto.
Vestiu a casaca. Abotoou-a. Ajeitou as medalhas no peito.
Olhou para o espelho pequpendurado na parede. Viu um homem de vinte e quatro anos com olheiras profundas e cabelo desgrenhado. Tentou arrumar o cabelo com os dedos. Não adiantou muito.
Sebastian saiu do escritório. Trancou a porta atrás dele. Caminhou pelos corredores em direção à sala do conselho.
Passou por vários soldados que o cumprimentaram. Ele apenas assentiu em resposta.
Chegou à sala do conselho três minutos antes das dez. A porta estava fechada. Um guarda estava ao lado dela.
"Os outros já chegaram, general." O guarda informou.
Sebastian assentiu. Esperou. Não queria entrar antes da hora marcada.
Exatamente às dez horas, abriu a porta e entrou.
A sala era grande e redonda. Uma mesa circular ocupava o centro. Oito homens já estavam sentados ao redor dela. Todos viraram quando Sebastian entrou.
"Bom dia." Ele disse.
"Bom dia, general." Eles responderam em coro.
Sebastian caminhou até sua cadeira. Era a maior e ficava de frente para a porta. Ele se sentou.
Os outros homens olhavam para ele esperando. Eram os comandantes das outras divisões e alguns conselheiros do rei.
"Podemos começar." Sebastian disse.
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